No início da chamada “modernidade”, no momento em que estava se formando o sistema interestatal europeu, o jurista e teólogo holandês Hugo Grotius (1583-1645) voltou a defender a existência de “guerras justas”, baseado na sua concepção do “direito natural”, mas ao mesmo tempo ele foi o primeiro a perceber que dentro do novo sistema político europeu, formado por Estados nacionais soberanos, era impossível haver consenso sobre um critério de arbitragem comum para dirimir os conflitos entre dois ou mais Estados territoriais que tivessem interesses contrários e excludentes.
A mesma ideia que levou seu contemporâneo inglês, o filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), a concluir de forma ainda mais radical, que nesse novo sistema de poder político, os Estados seriam eternos rivais preparando-se permanentemente para a guerra, devido à inexistência de um Leviatã internacional, ou seja, de um “poder superior” capaz de formular e impor um “critério único” de arbitragem válido para todos os Estados incluídos no sistema internacional. Depois disso, durante mais de trezentos anos, a discussão dos teóricos girou em torno destes dois problemas ou questões cruciais e congênitos do sistema interestatal inventado pelos europeus: a “questão do critério” e a questão do “poder global”.
E vários filósofos e cientistas políticos sonharam com a possibilidade de criação de um governo mundial, pautado por valores, normas e critérios que fossem universais, e que fossem administrados por alguma forma de “superestado”, de “estado universal”, ou de uma “potência hegemônica” que impusesse sua arbitragem e lograsse assim promover uma paz que fosse universal e duradoura. Vem daí a utopia de uma “ordem internacional pautada por regras e instituições universais”, como defendem até hoje os liberal-cosmopolitas e os defensores de uma ordem mundial baseada nos direitos humanos, tal como foram concebidos e definidos a partir do “iluminismo ocidental”. Apesar de que haja “fortes evidências históricas de que foi no período em que se consolidou a utopia europeia da “paz perpétua” e se formulou pela primeira vez o projeto de uma ordem mundial baseada em valores e instituições compartidas que se travaram as guerras mais numerosas e sanguinárias da história”.
Foi dentro deste mesmo espírito e mesmo movimento iluminista que nasceu o socialismo europeu, junto com seu projeto pacifista que foi abortado poucas décadas depois, no momento em os partidos social-democratas se submeteram, na grande maioria dos casos, à lógica dos interesses e conflitos de seus Estados nacionais, dentro e fora da Europa. E o mesmo aconteceu, de forma um pouco diferente, com os Partidos Comunistas criados a partir de 1919, que também abandonaram seu pacifismo retórico ao colocar-se ao lado da política externa da URSS, apoiando todas as guerras anticolonialistas do Terceiro Mundo, durante o século 20, e de forma mais genérica apoiando todas as guerras que tivessem um caráter anti-imperialista. Dessa maneira, se poderia mesmo afirmar que, durante o século 20, o movimento comunista internacional criou um novo “critério particular” de definição das “guerras justas” que seriam “legítimas” na medida em que combatessem o “imperialismo americano” em todo e qualquer lugar do mundo. Essa claridade acabou, no entanto, em 1991, com o fim da União Soviética e da bipolarização geopolítica do mundo. As “guerras de independência” das antigas colônias europeias perderam protagonismo, e a “questão imperialista” do final do século 20 e do início do 21 voltou a ter uma dimensão multipolar, complicando o mapa binário da guerra da antiga esquerda.
Foi assim que na década de 90, na hora da grande comemoração “liberal cosmopolita”, boa parte da esquerda aderiu à “utopia globalitária”, acreditando que este fosse o caminho e a “hora kantiana” de um mundo sem fronteiras, sem egoísmos nacionais, e submetido a um “critério único” de arbitragem universal, pautado pelo respeito aos Direitos Humanos e pela submissão às “leis universais” do Mercado. Todo um sistema de governança global que seria administrado através de regimes e instituições multilaterais tuteladas pelas Nações Unidas, que poderia ordenar a realização de “intervenções humanitárias que acabaram sendo executadas ou geridas, quase todas, de forma direta ou indireta, pelas tropas norte-americanas e da OTAN que fizeram 48 intervenções militares na década de 90, em geral em nome da defesa dos “direitos humanos”.
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