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México: sem direitos humanos não há desenvolvimento

As nossas ações, como sociedade, violentaram os direitos humanos de uma forma brutal. Tudo em nome do desenvolvimento. Entrevista. English Español

Francesc Badia i Dalmases Artemisa Castro
23 Janeiro 2017

Foto tirada durante a Cimeira Mundial de Filantropia Comunitária em Joanesburgo. Francesc Badia. Alguns direitos reservados.

Esta entrevista forma parte de uma série realizada em Joanesburgo motivada pela Cimeira Mundial de Filantropia Comunitária (1-2 dezembro 2016). 

Francesc Badia i Dalmases: o movimento da filantropia comunitária é global – pessoas de sessenta países assistiram a este evento, pessoas que trabalham complementando o financiamento com fontes tradicionais. A vossa organização foi pioneira na filantropia comunitária na América Latina. Que análise fazes da evolução da vossa organização?

Artemisa Castro: foi um processo muito interessante. O nosso trabalho começa a partir do trabalho de conservação da natureza, que já vínhamos fazendo com o Global Green Grants Fund, onde formávamos parte de um dos seus conselhos. E para o México estava definida como área de trabalho o noroeste do país. E quando criámos o Fundo de Acão Solidária (FASOL), eu já tinha estado lá uns dois anos. Já tinha me tinha apercebido das vantagens de dar dinheiro para que os grupos pequenos possam realizar o seu trabalho. A mim, pessoalmente, nunca me satisfez trabalhar exclusivamente em questões de conservação. Sempre me pareceu que a conservação da natureza se deve vincular à à atitude perante a natureza das atividades humanas. Até fundarmos a FASOL, há 10 anos, as ações de conservação estavam desvinculadas da consciência da atividade humana e da sua relação com a natureza. Gosto de ver a FASOL não como um grupo ou organização ambientalista, nem como uma fonte que apoia ações somente de conservação, mas sim como uma instituição que está mais enfocada no ser humano. Claro que a perspetiva de conservação é uma perspetiva transversal , mas o importante é preguntar-nos: que estamos a fazer nós, os seres humanos? Como tratamos este planeta? E a resposta, em particular no México, leva-nos também a falar dos direitos humanos.

As nossas ações, como sociedade, violentaram os direitos humanos de uma forma brutal, e tudo isto em nome do desenvolvimento. A exploração indiscriminada dos recursos. A violação dos direitos. Qualquer coisa em nome do desenvolvimento. Mas para a FASOL foi muito importante compreender o lugar que ocupamos no mundo do desenvolvimento e da conservação da natureza, e como nos relacionamos com outras organizações. Até à data, apoiámos mais de setecentas organizações. Alguns são muito pequenas. Observamos como, formando parte de uma pirâmide, nao nos ocupamos dos grupos de base, dos de baixo, que são os que apoiamos, aqueles que nem sequer estão constituídos formalmente ou que nem sequer estão organizados.

O modelo da FASOL reproduz o modelo que utiliza o Global Green Grants Funds; um modelo que tem tido êxito. Um modelo onde uma série de pessoas trabalha sobre o terreno, nos diferentes estados. Praticamente, somos todos ativistas socio-ambientais. Muitos trabalharam durante mais de 30 anos na defesa dos direitos socio-ambientais, no desenvolvimento comunitário, num desenvolvimento mais orientado à sustentabilidade e ao desenvolvimento local. E eles são os que nos apoiam. Chamamos-lhes mentores, que para nós são aqueles atores que participam de forma ativa em propor-nos os grupos e os projetos que iremos apoiar. Guiam-nos. Vemos claramente como os grupos precisam de construir capacidades.

FB: a ideia do mentor é interessante. No México convivem vários fatores negativos: a violência, a insegurança, a militarização da segurança, e influi o facto de que as comunidades locais ou municípios muitas vezes não podem trabalhar livremente porque têm as mãos atadas. E depois está o governo federal… Até que ponto os grupos que vocês apoiam se convertem num verdadeiro elemento de mudança?

AC: nós acreditamos que são as pessoas que mudam as coisas. São elas que vão mudar a situação do país, um país que se está a desmoronar, onde não há democracia. Um país que tem um governo que se dedica a privilegiar o setor privado, à custa de tudo e de todos. Um governo que está aliado ao crime organizado, um governo que confabula com as grandes corporações para se apropriar das riquezas do país.

Depois do Brasil, o México é um dos países mais ricos do mundo falando de biodiversidade. E, infelizmente, os que mais sofrem são os donos dos recursos. Infelizmente não porque sejam eles os donos, mas sim porque são os mais desfavorecidos, os marginados. Os recursos deste país, em geral, são propriedade dos donos das terras, são das comunidades camponesas e indígenas. Mas as mesmas sao-lhes confiscadas com toda a impunidade. Ainda que os marcos legais sejam muito estritos, não servem para nada, porque não sabemos utilizá-los, porque não temos a capacidade. Os donos desses recursos têm que se aperceber de que contam com as ferramentas para defender-se. E para isso estamos aqui, para informar, para procurar uma forma de ajudá-los a construir essas capacidades… e vimos como, em muitos lugares, essas pequenas ações não são suficientes.

Há muitos exemplos no México de comunidades, particularmente indígenas, que tomaram decisões e dizem: “isto é meu. Aqui não entras. Não vais entrar e não vais ficar com os nossos recursos” Evidentemente, isto gera uma violência brutal, que há que somar à violência preexistente gerada pelo narcotráfico, pelos grupos de crime organizados e pela sua aliança com o governo.  O narcotráfico, o governo, as grandes corporações acabam por ser um monstro, uma vez que são eles os que organizam os recursos, a mineração, as aguas… não se contentam com possuir os recursos naturais, a droga, tudo. Querem expandir-se. As pessoas estão fartas. E nós, desde a FASOL, acreditamos firmemente que se trata de um tema de organização.

O lema da cimeira, aqui em Joanesburgo, é “Shift the Power”, algo que me inquieta porque nos focamos no poder do dinheiro. Trata-se então de dar poder ao dinheiro? Se é assim, isto provoca-me ansiedade, porque o poder reside nas pessoas. O dinheiro é unicamente um meio para fazer algo. As pessoas não precisam de dinheiro para mudar as coisas, mas sim para obter a capacidade de se organizarem. Quando as pessoas se organizam tem um poder ao que nem todos os milhões do universo se podem opôr.

FB: talvez porque as pessoas sentem ao mesmo tempo fascinação e medo em relação ao poder do dinheiro?

AC: exatamente. Utiliza-se o dinheiro para desarranjar essa organização. Porque isso é o que fazem! Chegam às comunidades com dinheiro, destroem as estruturas comunitárias e evitam que se organize o poder social, que está por cima do dinheiro. Então, o nosso trabalho é esse, fazer com que as pessoas se apercebam que, ainda que venha o homem mais rico do mundo (como no México), com todos os seus milhões, não pode passar por cima de todos. E que podemos decidir nós o que fazer com os nossos recursos. É verdade que isso supõe enfrentarmo-nos à violência… duas pessoas, de dois grupos diferentes, que apoiámos, foram assassinadas. Apoiámos alguns grupos, e graças a esse apoio tiveram recursos para se mobilizarem. Mas foram assassinados…

FB: sim, o assassinato de ativistas socio-ambientais é um drama no México, e noutros lugares da América Latina. Também acontece com os jornalistas.

AC: os jornalistas também! Há um grupo de jornalistas no México que está muito perto do movimento socio-ambiental. Um deles foi assassinado há um ano em Veracruz. Tal como eles se juntam, nós temos que juntar-nos.

FB: sim, e por isso é tao importante o papel que desempenha a imprensa internacional, porque é nesse momento quando os governos se poem nervosos. O caso do México é claro. Tem uma diplomacia impecável, estao representados em grandes organismos para defender os direitos humanos mas em casa tem que defender um governo que dá cobertura a um grupo de…

AC: de bandidos. Já nem sei como chamar-lhes…

FB: talvez seja uma boa ideia acabar de ilustrar o que faz a FASOL, descrevendo algum caso concreto…

AC: em relação à violência? Temos um desses casos que mencionei, o de um rapaz que foi assassinado… há dois anos. Chamava-se Noé. Estavam a defender uma zona indígena contra uma barragem que queriam construir na sua comunidade; e ganharam. Cancela-se o projeto de construção. É um êxito, uma vez que a comunidade conseguiu o seu propósito. Então, quando pararam para assistir a uma celebração com uma rede ambientalista nacional matam o rapaz. Ainda assim, é um caso de êxito? Sim. Não se construiu a barragem, a comunidade conseguiu o que queria. E a comunidade apercebeu-se de que tem o poder nas suas mãos.

FB: e chegou-se a saber quem o matou?

AC: não, ninguém sabe. Dois indivíduos. Mas existe impunidade. Essa é a outra parte. A humanidade vive uma crise civilizacional, mas no México existe também uma enorme corrupção e impunidade que supera tudo. Ninguém quer falar disso. Uma das coisas que a mim me choca imenso é que nenhuma fundação queira falar destas coisas.

FB: por quê?

AC: não sei. Talvez porque é cómodo ficar calado. Ninguém quera falar disso. A mim convidaram-me para assitir uma reunião de fundações comunitárias no México, e ouvi-os falar sobre os projetos e os grupos que apoiam e o bem que o fazem…E eu levantei-me e disse: “porque não deixamos de por remendos? Temos um país em ruinas, com um governo que nos está a esmagar, uma classe política que dá nojo, uma classe corporativa aliada a tudo isto…e pomos remendos? E dizemos que estamos a apoiar o desenvolvimento? Acho que temos que falar de outras coisas.”

Então, levantou-se um dos assistentes e disse que era muito bonito ouvir a paixão com que trabalho, mas que não é assim que se faz o trabalho. Que esse não era o objetivo. Então pergunetei; “do que estamos a falar?”. E o mais cínico de tudo foi que, ao final da reunião, anunciaram a presença de dois dos seus grandes novos sócios financeiros. Levantam-se – a cabeça dava-me volta  – e são a Fundação Monex e a Fundação Soriana. Dois dos grandes orquestradores da ultima fraude eleitoral. Levantam-se e dizem que são os nossos sócios para o desenvolvimento comunitário! E eu digo, bem, ou eu estou louca, ou não sei o que se passa. Onde está a congruência? Não temos valores. Estamos a pôr o dinheiro por cima de tudo. E um deles levanta-se e diz: “nós somos especialistas em desenvolvimento comunitário”. Fui-me embora. Mas a realidade é que calar-se é muito cómodo. O dinheiro faz cócegas a todos. É o diabo. Porque todos (ou a maior parte) dos que estamos na filantropia comunitária recolhemos dinheiro, de outros lados, e então é cómodo. “Não levantes ondas, senão deixas de receber dinheiro.”

FB: este é um ponto de claro conflito entre o dinheiro e os princípios.

AC: sobretudo quando se trata de um assunto de vida ou de morte como o atual. Vejo nas noticias, que houve um ataque suicida não sei onde: quatro mortos. Eu pergunto: porque não anunciam a quantidade de mortos que aparecem todos os dias neste país? Todos os dias há mais de 50. E não estamos em guerra? Em 2014, houveram nada menos que 35.000 assassinatos e milhares e milhares de desaparecidos. Num ano. Do que estamos a falar então?

FB: a FASOL continua a trabalhar, obtendo êxitos, apesar de tudo…

AC: o maravilhoso é ver como, apesar de tudo, as comunidades, particularmente as comunidades indígenas estão e as comunidades não indígenas estao a levar para a frente o seu trabalho. Não vamos ganhar esta guerra através das balas. Temos que ser mais inteligentes. Temos que desenvolver formas mais criativas, como o estão a fazer muitos grupos. Isso é mudar o poder. E não precisamos de milhões nem de armas. Este é um retrato, o nosso retrato. Que fazemos nós? Desempenhamos o papel de uma Madre Teresa de Calcutá? Não. Esse não é o nosso papel. 

FB: talvez o problema seja que a caridade não possui uma vocação transformadora?

AC: talvez. Em qualquer caso, a FASOL está no terreno para determinar como estabelecer alianças com outros fundos, com fundações. Como formar um sistema de apoio comunitário, com todas as nossas diferenças, com a toda a nossa diversidade, respeitando, confiando…, mas antes que nada, temos que reconhecer uma coisa: eu não posso trabalhar contigo se tu vês outra coisa. A sério.

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