democraciaAbierta: Opinion

Sobre o significado da paz e da permanência das guerras

“Por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra, mesmo sabendo que o instinto de destruição e morte é inseparável da libido humana?”, Freud perguntou a Einstein

José Luís Fiori
7 Setembro 2021, 12.01
A queda de Constantinopla
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Domínio Público

Da mesma forma que a natureza do mau tempo não consiste em algum chuvisco, mas numa tendência à chuva intermitente com duração de dias, a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na disposição para ela durante todo o tempo em que não há segurança do contrário. O tempo restante se chama de

PAZ.

Hobbes, T., Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 95

(tradução: Rosina D’Angina)

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No ano de 1933, um pouco antes da Segunda Guerra Mundial, Albert Einstein, “pai” da Teoria da Relatividade, enviou uma carta a Sigmund Freud, “pai” da Teoria da Psicanálise, sobre o tema da “guerra e da paz”. Nessa carta, Einstein perguntou a Freud como ele explicaria a permanência das guerras, através dos séculos, e se Freud considerava que fosse “possível controlar a evolução da mente do homem de modo a torná- la à prova das psicoses do ódio e da destrutividade”. Freud respondeu a Einstein que, do ponto de vista de sua teoria psicanalítica, “não havia maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem”, apesar de que fosse possível “tentar desviá-los num grau tal que eles não necessitassem encontrar sua expressão na guerra”.

Por sua vez, na sua “carta-resposta”, Sigmund Freud levantou outra questão, e devolveu a Einstein uma pergunta aparentemente insólita, dirigida também a todos os “homens de boa vontade”: “por que o senhor, eu e tantas outras pessoas nos revoltamos tão violentamente contra a guerra, mesmo sabendo que o instinto de destruição e morte é inseparável da libido humana?”. E se apressa em responder, falando para si mesmo, “que a principal razão por que nos rebelamos contra a guerra é que não podemos fazer outra coisa. Somos pacifistas porque somos obrigados a sê-lo, por motivos orgânicos, básicos [...], temos uma intolerância constitucional à guerra, digamos, uma idiossincrasia exacerbada no mais alto grau”.

Tudo indica que a história referenda – até hoje – as duas teses de Freud, porque a história dos homens tem sido de guerras quase contínuas, desde as primeiras civilizações e impérios, cinco mil anos atrás. E seguiu sendo assim, mesmo depois que o estoicismo romano e o cristianismo dos primeiros séculos começaram a difundir a ideia da “paz” como um valor universal, transformando-a progressivamente no objetivo proclamado de quase todas as comunidades humanas. Por isso se pode antecipar que a “paz” se transformou, com o passar dos séculos, na mais permanente das utopias humanas.

Apesar disso, não existe até hoje nenhuma teoria que tenha conseguido explicar – nem mesmo a psicanálise – a sucessão de guerras e pazes que se seguiram umas às outras desde o fim da famosa Pax Romana, que vigorou entre os anos 30 a.C, até 180 d.C., o período áureo do “pacifismo” (filosófico, jurídico ou teológico) estoico e cristão. Sucessivas guerras e pazes que foram responsáveis pela construção de sucessivas “ordens internacionais” que vigoraram até o momento das novas guerras e dos novos “acordos de paz” que modificaram progressivamente, ou substituíram radicalmente, a “ordem internacional” anterior.

Não existe até hoje nenhuma teoria que tenha conseguido explicar a sucessão de guerras e pazes que se seguiram umas às outras desde o fim da famosa Pax Romana

Como aconteceu com a Guerra e a Paz de Westfália, entre 1618 e 1648, que deram origem ao sistema de poder interestatal que permanece vigente, em última instância, até hoje, com todas as modificações que lhe foram impostas pelas sucessivas guerras nacionais e seus “tratados de paz”, dos séculos XVIII, XIX, XX e XXI. Incluem-se aí as Guerras Bonapartistas e a Paz de Viena de 1815, que deram origem a uma ordem e uma paz na Europa que duraram quase um século, apesar das infinitas guerras coloniais feitas pelos europeus em todo o mundo.

Esse fenômeno se repetiu uma vez mais depois do fim da Primeira Guerra Mundial e da Paz de Versailles de 1919, e após o fim da Segunda Guerra Mundial e dos Acordos de Paz de Yalta, Potsdam e São Francisco, de 1945, que deram origem à chamada “ordem liberal” contemporânea da Guerra Fria. Mas o mesmo não voltou a acontecer no fim da Guerra Fria e da Guerra do Golfo de 1991, quando não foi assinado nenhum novo grande acordo de paz entre vitoriosos e derrotados, e teve início um dos “períodos de paz” mais violentos da história recente da humanidade, sobretudo para o “mundo islâmico”, que sofre até hoje as consequências de ter desafiado, derrotado e conquistado o antigo Império Romano do Ocidente e do Oriente.

Já na terceira década do século XXI, para especular sobre o futuro da nova ordem mundial “sino-americana” nascida dos últimos trinta anos de “guerra sem fim”, entre 1991 e 2021, deve-se partir necessariamente dos ensinamentos passados, de uma história de longo prazo, sobre as guerras e a paz, que vêm de muito antes da “modernidade europeia”, mas que adquiriram particular intensidade e nitidez desde o nascimento do sistema interestatal europeu, nos séculos XVII e XVIII, ao qual se somaram, na segunda metade do século XX, os Estados dos continentes africano e asiático, e de forma muito particular, os Estados nacionais da China e da Índia, que possuem em conjunto cerca de um terço da população mundial.

i) O primeiro ensinamento desta longa história é que o objetivo de todas as guerras nunca foi a “paz pela paz”; foi sempre a conquista de uma “vitória” que permitisse ao “ganhador” impor sua vontade aos derrotados, junto com seus valores, instituições e regras de comportamento a serem aceitas e obedecidas a partir da vitória consagrada pela assinatura dos “acordos” ou “tratados de paz” que passam a regular as relações entre vencedores e perdedores. Entretanto, o que a história também ensina é que a paz conquistada através da guerra e da submissão dos derrotados acaba se transformando – quase invariavelmente – no ponto de partida e motivo principal da nova guerra de “revanche” dos derrotados. Exatamente como previu o diplomata francês Abbé de Saint Pierre, na sua obra clássica de 1712, na qual formulou a tese clássica que depois foi retomada e defendida por Hans Morghentau, o pai do realismo norte-americano, em 1944. Os dois autores, compartilhando a convicção de que toda paz é sempre, e em última instância, apenas uma “trégua”, que pode ser mais ou menos longa, mas que não interrompe jamais a preparação da nova guerra, seja por parte dos derrotados, seja por parte dos vitoriosos.

ii) O segundo ensinamento é que a “paz” não é sinônimo de “ordem”, nem é uma condição necessária da “ordem”, mesmo quando a “ordem” seja uma condição necessária da “paz”. Haja vista o caso clássico da Paz de Westfália, que definiu as bases de uma “ordem europeia” cujo árbitro em última instância foi sempre a própria guerra, ou melhor, a capacidade de uns maior do que a de outros de fazer guerra. E agora de novo, nos últimos trinta anos, depois da vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria e na Guerra do Golfo, quando conquistaram o comando unipolar do mundo, com condições excepcionais de exercício de seu poder global, sem nenhum tipo de contestação. O que se assistiu na prática, como já vimos, foi uma nova ordem mundial mantida através do exercício da guerra contínua, ou de uma “guerra sem fim”, como chamaram os próprios norte- americanos. Isso confirma a ideia de que toda “ordem internacional” requer hierarquias, normas e instituições, árbitros e protocolos de punição, mas deixa claro ao mesmo tempo que quem estabelece essas normas e hierarquias, em última instância, são as próprias potências dominantes através de suas guerras.

Na História, como na conjuntura atual do sistema internacional, guerra e paz são inseparáveis e atuam de forma conjunta

i) O terceiro ensinamento é que, para existir, o poder precisa ser exercido de forma permanente. Por isso, no sistema interestatal criado pelos europeus, as “potências dominantes” de cada época necessitam estar em permanente preparação para a guerra, para poder exercer e preservar o seu próprio poder. No plano internacional, como diria Maquiavel, o poder precisa ser temido mais do que amado, e ele e temido pela sua capacidade de destruição muito mais do que por sua capacidade de construção ou reconstrução dos países que sejam objeto dos seus ataques e ocupações transitórias. Mais do que isto, o poder das grandes potências precisa expandir-se para manter a posição que já possuem, e a própria lógica dessa “expansão contínua” acaba impedindo que as potências dominantes aceitem o status quo que elas próprias instalaram através de suas vitórias. Com este objetivo, inclusive, as “grandes potências” são obrigadas a destruir as “regras” e “instituições” que elas mesmas criaram, sempre e quando tais regras e instituições passam a ameaçar seu processo contínuo e necessário de expansão. Foi sempre assim, mas esta tendência se agravou nos últimos trinta anos, após 1991, quando os Estados Unidos se viram na condição de detentores exclusivos do poder global dentro do sistema internacional. Confirma-se assim nossa tese de que o hegemon é o principal desestabilizador do próprio sistema, pelo simples motivo de que ele precisa expandir-se e desordenar o sistema continuamente para se manter no mesmo lugar. Fenômeno que chamamos em outro momento de o grande “paradoxo do hiperpoder”.

ii) O quarto ensinamento é que, apesar da permanência das guerras, a “paz” se transformou, através dos séculos, num objetivo e numa utopia ética quase universal. Talvez inclusive porque com o desenvolvimento das armas atômicas, a “paz” acabou se transformando – como disse Freud – numa reação instintiva e quase biológica de defesa da espécie humana contra si mesma, e de preservação do Universo, contra o ímpeto destrutivo ou “princípio de morte” do próprio Homo sapiens. Neste sentido, a “paz” é sem dúvida a maior das utopias que moveram a humanidade nos dois últimos milênios. Ao mesmo tempo, é necessário reconhecer – paradoxalmente – que a “guerra” funcionou durante todo esse tempo como um verdadeiro instrumento de criação da “ética internacional” tecida através de sucessivos “acordos” e “tratados”, que primeiro foram impostos pelos “vitoriosos”, e que depois foram questionados pelos “derrotados”, numa sucessão contínua de novas guerras e “conquistas éticas”. Na verdade, as guerras foram construindo e destruindo hierarquias, mas também construíram sistemas de crenças e novos cânones de justiça que fizeram parte de sucessivas “ordens internacionais” e se mantiveram mesmo depois que essas ordens foram derrubadas por novos conflitos, guerras e hierarquias internacionais.

Essa relação dialética e necessária entre a guerra e a paz é extremamente difícil de compreender e de aceitar, assim como tão ou mais difícil é entender e aceitar a existência de uma pulsão de morte ao lado da própria libido humana. Mas a verdade é que na História, como na conjuntura atual do sistema internacional, guerra e paz são inseparáveis e atuam de forma conjunta, como fontes energéticas de um mesmo processo contraditório de busca e de construção de uma ordem ética universal que vai sendo tecida aos poucos, mas que é definitivamente inalcançável pela espécie humana. Fazendo uma analogia geométrica, se poderia comparar este processo de busca perene, e de construção inacabada, com uma curva assintótica infinitamente elástica que passa por grandes trepidações, mas aponta sempre na mesma direção da utopia e da esperança da paz.

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