Inspirando-se no evento "Cidades sem medo" ("Fearless Cities") deste ano, a Fundación Avina e o Democracia Abierta estabeleceram uma colaboração especial para explorar algumas das experiências políticas mais interessantes que estão emergendo na América Latina.
Concersar com líderes relevantes neste campo, diretamente envolvidos na ação da inovação política a nível local, nos deu a oportunidade de buscar respostas para quatro questões principais que afetam de forma diferente, porém transversal, todos esses projetos: a) Visão de inovação; b) contexto político nacional e limitações do poder local; c) Influência do contexto político internacional e d) A questão da liderança.
Nesta página, os inovadores compartilham sua resposta ao terceiro desses temas:
TEMA 3: Em um mundo fortemente interligado, a dinâmica geopolítica afeta todos os níveis de governo. Estamos testemunhando um "efeito Trump" que sacode as bases da ordem internacional construída nas últimas décadas, não precisamente a favor de um maior multilateralismo e maior democratização de instituições e narrativas. Há efeitos perversos, por exemplo, em questões sobre os limites para a democracia. Como tudo isso afeta o dia-a-dia de seu trabalho político?
Javier Arteaga Romero, Nariño (Colombia)
As dinâmicas regionais e internacionais não são suficientes para permear ou ter um impacto significativo sobre o que estamos fazendo em Nariño. A nível internacional, o que foi alcançado é realizar um trabalho conjunto, especialmente com pessoas de Madri e Barcelona, em suas políticas de governo aberto. E não apenas na sua política, mas também no desenvolvimento de laços pessoais. No caso de Nariño, fomos visitados pelo diretor do Medialab, Marcos Antonio Lafuente, que teoriza muito sobre o pró-comum, Raúl Oliván de Zaragoza, ou Domenico Di Siena, que têm muito a ver com projetos cívicos. Não passam quinze dias sem que alguém venha a Nariño para compartilhar esse conhecimento, o que nos colocou em um radar muito interessante. Penso que a coincidência de inovações políticas interessantes a nível internacional é o que levou ao interesse e ao intercâmbio mútuo. Claro, tudo isso não seria possível sem o contexto internacional, que agora está ao nosso alcance através de tecnologias que também permitem, por exemplo, tantas iniciativas governamentais abertas em toda a América Latina, Europa e além.
Áurea Carolina de Freitas e Silva, PSOL, Belo Horizonte (Brasil)
Observamos com preocupação o surgimento de fenômenos como o Trump, com esse discurso que vem com a extrema direita, não apenas da direita mais extrema, mas também por parte da direita mais soft, uma direita "inofensiva", uma direita muito inteligente, que diz que sabe como administrar o estado. Contra isso, temos que contrastar nossas narrativas, não apenas com o imaginário, mas com a prática política. Temos que ensinar às pessoas que somos capazes de fazer com que a democracia valha a pena. Somente assim seremos capazes de contrariar os ventos ameaçadores que nos chegam de dentro e de fora.
Caio Tendolini, Update Politics, SÃO PABLO (Brasil)
No geral, o que estamos vivendo é uma crise de confiança no establishment do poder em todo o mundo. Ele se manifesta muito fortemente na política, mas não apenas. Ou seja, há uma rejeição do establishment político, do establishment econômico, do establishment cultural, do establishment criminal, que são poucas pessoas, mas estão no poder há 40 anos. E diante da crise no repertório de soluções políticas, as pessoas estão cada vez mais indignadas.
Mas esse establishment não consegue se conectar com essa indignação. Ele se coloca em uma posição muito arrogante. Eles dizem: "Não, estamos bem; aqui tudo está quieto; estamos aqui, não precisamos melhorar". Mas o Trump veio com outro discurso, dizendo: "Não, sua indignação é real". Então, o Trump conecta e catalisa o voto de protesto. Quando o establishment, que ocupa o espaço de poder, não consegue se conectar com a verdadeira indignação das pessoas, cria um vácuo de poder e isso se enche muito rápido. O discurso que mais ocupa esse espaço é o discurso que vai na linha do Trump. É o discurso de "Eu não sou um político, temos que limpar o pântano". E esse discurso criminaliza a política.
Eu acho que o que estamos vendo quando falamos desse ecossistema de inovação política (estamos vendo isso na Espanha, na América Latina e em vários lugares) é outra dinâmica, é uma dinâmica que tenta resgatar a política. Durante os protestos dos estudantes do ensino médio em São Paulo, houve um post que viralizou dizendo: "Kevin é um preguiçoso, sua mãe diz que ele é um mau aluno, seu professor diz que ele é um mau aluno, seu tutor diz que ele é um mau aluno, mas nas escolas ocupadas, Kevin é o primeiro a acordar, ensina yoga, limpa os banheiros e é o último a dormir. Kevin é um dos melhores alunos que a escola já teve". Então, o problema não é que Kevin não goste da escola; Kevin não gosta dessa escola. E acho que a política é um pouco da mesma coisa de que estamos falando. Não é que não gostamos de política, não gostamos dessa política e precisamos reinventá-la, precisamos resgatar valores e inventar aquilo que somos capazes de atender.
Junto com muitos movimentos na Espanha e na Europa, e mesmo nos Estados Unidos, também estamos nos colocando como outsiders, mas como outsiders que vêm de uma construção coletiva, que acreditam no público, que acreditam no comum. Ou seja, somos um outsider que não nega o público. É verdade que esta narrativa de construção coletiva é muito mais difícil do que a narrativa que simplesmente diz: "Eu entendo seu problema e a resposta sou eu, e por isso ... we’re gonna build the wall ". É muito simplista, não simples, simplista. E muito pessoal. Nós, ao contrário, estamos falando de um processo que é um pouco mais difícil, estamos enfrentando um problema cultural um pouco mais difícil, mas estamos vendo que é possível. Se fizermos bem, podemos avançar, podemos escolher prefeitos, podemos escolher vereadores, podemos escolher pessoas.
Sâmia Bonfim, Bancada Activista, SÃO PAULO (Brasil)
O contexto internacional, com a subido do Trump, proporcionou muito espaço para os outsiders, para pessoas que estão fora da política, mas que são bem-vindas em espaços institucionais, o que mostra as falhas do modelo democrático representativo. Essas falhas apresentam perigos para o modelo democrático, porque a saída nem sempre contribui para fortalecer os instrumentos de participação popular, de democracia real, de democracia radical, mas pela negação dos instrumentos da democracia. E algo semelhante está acontecendo no Brasil.
E não faço uma conexão tão direta entre Temer e Trump, como outros, porque penso que são fenômenos de natureza diferente. Temer tem um elemento distintivo, que é a falta de legitimidade, o que se traduz na completa negação da democracia. Quando dizemos que ele não foi eleito por ninguém, isso não acontece tanto porque as pessoas sentem falta do governo anterior – afinal, Temer foi vice-presidente da presidente Dilma – mas acontece mais por causa de seu programa – reforma da segurança social, reforma trabalhista, o fato de não haver mulher em seu governo, entre outras coisas – são apostas pelas quais a população nunca votaria a favor. É por isso que é ilegítimo, porque somente assim eles podem implementar uma política tão conservadora e tão devastadora para os nossos direitos.
Mas talvez essa experiência que o país está vivendo ajude a fortalecer a democracia. Pode ser útil perceber a importância de ter novos representantes, com um programa, uma plataforma política que tem a ver com os nossos interesses. Por outro lado, temos o candidato presidencial de direita, Bolsonaro, que é uma figura que ocupa o segundo lugar hoje nas pesquisas eleitorais. Eu tenho receio porque ele é um outsider, ele diz o que ele quer, é corajoso, desbocado e pessoas gostam disso. Mas a campanha eleitoral oficial ainda não começou. Durante a corrida presidencial há campanhas, há debates, e não tenho certeza de que as pessoas abracem esse discurso conservador. Quando as pessoas começarem a ver que os seus direitos podem ir pelo ralo, que suas vidas serão afetadas, eles não votarão por isso. É por isso que experiências como a nossa Bancada Ativista são importantes, porque elas são capazes de mostrar que a democracia, como ela é, é defeituosa, e que precisamos melhorá-la, disputá-la. O esvaziamento da política não é o que irá resolver a nossa vida.
Susana Ochoa, Wikipolítica, Jalisco (México)
O que acontece nos Estados Unidos tem um efeito imediato no México. Mas acho que o principal problema com o Trump é que ele diz muitas verdades. Ele diz, e é verdade, que existem muitos meios de comunicação que enganam as pessoas, e que o sistema não está funcionando, e isso é verdade. Digamos que ele se refere a verdades comuns, mas daí ele propõe soluções extremas e atrozes, e acho que esse é o principal problema.
No México, temos o PRI, que esteve muito tempo no poder e durante muito tempo exerceu o poder de forma muito autoritária, mas ao mesmo tempo existiram alguns progressos no país por alguns anos. Consequentemente, especialmente para a geração de pessoas com mais de 50 ou 60 anos, essa ideia de que é preciso uma “mão dura” – a mano dura – tem força, que isso faz com que as leis sejam cumpridas. Porque, em um país como o México, a impunidade é uma questão brutal: praticamente não existe nenhuma garantia de acesso à justiça, que é a única coisa que uma pessoa comum tem para se defender contra qualquer coisa. O resultado é que a justiça não existe no México. E então, é muito fácil construir essa ideia de que uma mão dura pode devolver a justiça.
O que realmente nos preocupa no México é a violação sistemática dos direitos humanos. Primeiro, porque a questão dos direitos humanos não é algo que esteja na agenda dos cidadãos comuns: as pessoas não sabem quais são os direitos humanos. Eles não sabem que eles têm. Desta forma estão em perigo, porque as pessoas comuns não as abraçam, porque elas não as conhecem.
Vou contar uma anedota muito representativa do que acontece no México em matéria de direitos humanos. Eu marquei uma reunião com os vizinhos e vizinhas da colônia onde moro porque mataram uma pessoa na frente da minha casa, e é uma zona central. Fiquei impressionada com o número de pessoas que vão à faculdade e não passam nenhuma necessidade que disseram que tinham que fazer o que se faz em Cingapura, que é aplicar a pena de morte, porque é o único que funcionou para elas. Isso me preocupou muito. As pessoas estão muito assustadas, querem viver seguras e acreditam que viver seguro significa ter soldados nas ruas, significa poder deter cidadão sem garantias, espioná-lo. Essas são as coisas que me preocupam.
Caren Tepp, Ciudad Futura, Rosario, Argentina
Os contextos tanto nacionais quanto internacionais influenciam e tornam a tarefa mais difícil porque o vento vem de frente. E acredito que também existe uma ruptura com talvez as tradições da esquerda, a velha teoria de que, quanto pior as condições, melhor a oportunidade de realizar a revolução ou os processos de transformação. Se existe algo que aprendemos há muitos anos é que essa teoria é absolutamente desastrosa, porque para que isso seja verdade, é necessário que uma alta porcentagem da sociedade que tem que sofrer muito, e sofrer muito hoje.
Diante disso, devemos melhorar as condições aqui e agora, entre todos. Não vale se isolar. A experiência de Ciudades Sin Miedo (Cidades Sem Medo) em Barcelona está criando algo muito interessante que tem a ver com esse trabalho de rede colaborativa. Propostas horizontais de experiências e links entre cidades de transformações genuínas, que são verdadeiras. A experiência de vive-las nos permite ver algo diferente, algo que não é um acordo feito em uma pequena mesa por pessoas que talvez estejam trabalhando em uma estratégia particular, mas é algo que tem a ver, inclusive, com o conceito de feminização da política, algo que também foi discutido nesse encontro, e que é essa nova forma de construção política.
Temos um enorme desafio à frente para, como já disse antes, quando o vento volte a soprar na nossa direção, sejamos nós os que construímos desde baixo o poder, com essa ideia de poder local, poder com os outros e com as outras, e que sejamos nós os os protagonistas dos tempos favoráveis. Em Ciudad Futura, sempre dizemos que o conteúdo das nossas propostas políticas, das bandeiras que defendemos, é a maneira através da qual realizamos essa construção política.
É por isso que é necessário ver que essa força política (e da política) é aquela ação coletiva que nos permite expandir o horizonte do que é possível, tornando-o realmente coletivo, realmente horizontal, democrático e, acima de tudo, transparente. A questão da transparência, eu acredito, é importante para todos os municípios de transformação, ou para todos nós que estamos trabalhando nesta ideia. Essa ideia tem a ver com a forma como as pessoas comuns cuidam dos assuntos que pertencem a todos, e para isso nada melhor do que a política local e de proximidade que podem dar conta das transformações reais que podem ser levadas adiante.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy