democraciaAbierta: Opinion

Ainda se pode vir a público?

Lula recebeu, das mãos de Alckmin, a terceira dose da vacina de Covid-19, mais isso foi negado pela extrema-direita brasileira

Jean Wyllys
2 Março 2023, 7.57

Imagem: https://twitter.com/LulaOficial

Há poucos dias o vice-presidente do Brasil, Geraldo Alckmin, precisou “vir a público” para reafirmar um fato presenciado por várias pessoas e noticiado por vários jornalistas que o testemunharam: no último 27 de fevereiro, para marcar o lançamento da campanha nacional de vacinação, o presidente Lula recebeu, das mãos de Alckmin, que é médico, a terceira dose de reforço da vacina contra a Covid-19. Este fato foi negado por meio de manipulação das imagens e mentiras em mídias sociais digitais da extrema-direita brasileira. A desinformação viralizou de tal maneira que exigiu que o vice-presidente acusasse a mentira e reafirmasse o fato “publicamente”.

Se ponho as expressões “vir a público” e “publicamente” assim, entre aspas, é para destacar uma transformação em seus significados que refletem aspectos da contemporaneidade e e sua cultura digital: ninguém mais consegue vir a público ou falar publicamente como antes de o capitalismo de plataforma e vigilância ter explodido a esfera pública – a grande bolha comum construída pelos meios de comunicação de massa (o rádio, o cinema e principalmente a televisão) – em múltiplas bolhas ou esferas sem comunicação entre si ou que se comunicam com dificuldade. Sendo assim, Geraldo Alckmin no máximo veio a seu público acusar a desinformação e reafirmar a verdade dos fatos – o que talvez signifique que os públicos que precisavam escutar sua mensagem não a tenham recebido ou caso a tenham recebido não acreditem nela, já que não acreditaram antes na verdade que ela reafirma.

Este episódio frustra, por suposto, aqueles que, embriagados pela festa da vitória de Lula e/ou pela arrogância, mesmo depois dos atos terroristas de 08 de janeiro, acreditavam que neonazismo e neofascismo expressos na seita política e religiosa de culto a Bolsonaro estavam derrotados ou, no mínimo, intimidados. Não, não estão. Sua economia de desinformação, assédio e assassinatos de reputações – e todo a infraestrutura e o financiamento que esta pressupõe – segue a pleno vapor.

A frase com que Eduardo Bolsonaro encerra o vídeo da propaganda da “Bolsonaro store” – “Nosso sonho está mais vivo do que nunca” – não é nem pode ser tratada como uma anedota, mas sim como uma ameaça. Outras três provas de que o neonazismo bolsonarista segue vivo e politicamente articulado são a) o discurso racista e xenófobo do vereador Sandro Fantinel (Patriota) contra os baianos libertados mês passado de trabalho escravo em fazendas do Rio Grande do Sul; b) a nota do Centro de Indústria, Comércio e Serviços de Bento Gonçalves, cidade do mesmo Rio Grande do Sul, culpando o programa social de transferência de renda Bolsa Família pelo fato de terratenientes da região escravizarem camponeses pobres e migrantes; c) e, por fim, o lobby por parte de Damares Alves para presidir a comissão do Senado que tratará do genocídio Ianomâmi aguçado em sua gestão como “ministra dos direitos humanos”.

No sentido mais geral, esse caso em que o vice-presidente precisou desmentir uma fake news que se alastrou como uma peste em redes da da extrema-direita é paradigmático:

1) da desinformação contemporânea, que só é possível graças aos algoritmos dos programas a partir dos quais operam o Google, Amazon, Facebook, Twitter, Instagram, TikTok, WhatsApp, Telegram e etc; que nos dividem e nos aprisionam em bolhas de (des)informação para extrair nossos dados, vigiar-nos e nos manipular como consumidores de maneira mais precisa e eficaz, além de implantar na maioria das pessoas, principalmente dos adolescentes, o desejo de ser um vírus, de viralizar;

2) da articulação entre os movimentos políticos que negam a eficácia das vacinas (anti-vax), as mudanças climáticas decorrentes do aquecimento global e o resultado de eleições democráticas livres e limpas; e de como a extrema-direita tem, nesse capitalismo de plataforma e vigilância, uma grande vantagem sobre a esquerda senão um poderoso aliado, na medida em que seu sucesso eleitoral dependem da propagação de mentiras e da divisão das pessoas;

3) e do enorme desafio que democratas, cientistas éticos e humanistas temos pela frente de reconstruir aquilo que Hannah Arendt chama de “mundo comum”, aquele que permitirá a uma autoridade política “vir a público” e falar para uma ampla maioria que comunga a realidade dos fatos e uma mesma percepção de mundo. Reconstruir este mundo implica em que a representação política nos Estados Nações estabeleçam, por meio de leis e políticas públicas, novas contrapartidas e responsabilidades para as big tech.

No caso particular do Brasil, a recomposição da esfera pública – ou, no mínimo, a construção de pontes entre as bolhas maiores da grande espuma em que esta foi transformada pelo capitalismo de plataforma, para usar uma metáfora do filósofo Peter Sterlodjik sobre os nossos atuais – vai exigir dois movimentos inextrincáveis como as duas faces de uma moeda: a erradicação do antipetismo (algo que opera mais ou menos como antissemitismo e a homofobia ) na mídia de direita ainda hegemônica e a desbolsonarização do Estado e da cultura.

Não há bolsonarismo (neonazismo e/ou neofascismo) sem antipetismo; e este, por sua vez, acaba por engendrar aquele mesmo que ele venha a mudar de nome no futuro próximo.

Em vídeo-coluna para esta mesma openDemocracy/democraciaAbierta, eu expliquei brevemente o que significava desbolsonarizar o país. Em resumo, trata-se de algo que deve ser inspirado no processo de “desnazificação da Alemanha”, que todavia segue em curso mesmo mais de 70 anos após a derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial: identificação e punição de quem, dentro da estrutura do Estado, foi cúmplice dos crimes nazistas e depuração dessas instituições daqueles que se identificam com esse mal.

Para o filólogo Victor Klemperer, a desnazificação “deve fazer desaparecer não só a ação nazista, mas também suas convicções, hábitos e pensamentos, bem como seu caldo de cultivo: a linguagem nazista”.

No caso do bolsonarismo, seu caldo de cultivo é o antipetismo da cobertura jornalística de política feita pelos jornais e telejornais hegemônicos ainda concentrados nas mãos de oligarquias políticas.

Sim, a desbolsonarização não será uma tarefa fácil, principalmente se levarmos em conta que, além do antipetismo dos meios de massa, há uma massa de meios que funcionam em circuitos fechados à qual até agora não se não se pode se dirigir e que amiúde tem, cada bolha da espuma, seus próprios interesses, nada coletivos nem republicanos.

Contudo, mesmo sem um público ao qual se dirigir, e em meio à censura imposta pelo ruído e a desinformação produzidos deliberadamente pela extrema-direita, faz-se necessário empreender já a reconstrução do comunidade.

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