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Aliança diabólica: a cruzada global contra a justiça reprodutiva

Na medida que a extrema direita se aproxima cada vez mais, precisamos ficar juntos e fortalecer nossos laços.

Kristina Hinz
Kristina Hinz Aline Coutinho Hanna Grześkiewicz Ghadeer Ahmed Alicja Flisak Hadir Barbar
23 Março 2021, 12.01
Protesto contra a liberalização do aborto no Brasil, na Avenida Paulista, em São Paulo
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Cris Faga/NurPhoto/PA Images

Em outubro de 2020, representantes governamentais de mais de 30 países, incluindo os EUA, Brasil, Polônia e Egito, assinaram a chamada "Declaração de Consenso de Genebra sobre Promoção da Saúde da Mulher e Fortalecimento da Família". O documento, não vinculante juridicamente, afirma que "não há direito internacional ao aborto" e promove a família como "a unidade de grupo natural e fundamental da sociedade", sendo duramente criticado como o mais recente exemplo de ataque internacional contra os direitos da mulher.

A ascensão de uma nova e poderosa direita política nos EUA, Brasil e Polônia que favorece os valores morais cristãos tradicionais e conservadores, incluindo a defesa de um modelo de família heterocêntrico e o questionamento dos direitos reprodutivos e sexuais, abriu a possibilidade de novas alianças entre as forças conservadoras de direita e políticas islâmicas nos países muçulmanos. A semelhança na forma como certas forças cristãs e islâmicas empregam a religião - na construção de um ideal que afirma defender a vida humana e a família - é a base para uma aliança que se diferencia dos conceitos hegemônicos de direitos humanos formulados e defendidos nos fóruns multilaterais da ONU e da OMS.

Este novo alinhamento na política externa expõe a crescente influência internacional das facções político-religiosas, revelando alianças inesperadas entre moralismos católicos, evangélicos e islâmicos na área da justiça reprodutiva, com um objetivo principal: diminuir a autonomia e a agência das mulheres para decidir o que querem para seus próprios corpos.

Brasil: moralismo evangélico

Nos últimos anos, o Brasil tem visto uma forte expansão das forças conservadoras e especialmente neopentecostais na política partidária. A composição do Congresso favorece o avanço das agendas contra a justiça reprodutiva: quase 40% dos parlamentares brasileiros se identificam como membros da Frente Parlamentar Evangélica. O grupo consiste de políticos de vários partidos - muitos deles originalmente pastores, bispos ou cantores de gospel - que se posicionam contra a igualdade de gênero, aborto, homossexualidade e muito mais.

Previamente reconhecido como um defensor do universalismo dos direitos humanos, o Brasil hoje faz da luta contra a "ideologia de gênero" uma de suas bandeiras principais

Com a eleição do presidente Jair Bolsonaro em 2018, os políticos neopentecostais passaram a ocupar cargos importantes no governo, incluindo a pastora evangélica Damares Alves como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Recentemente, Alves provocou protestos públicos quando interferiu pessoalmente no caso de uma menina de dez anos de idade que procurou o aborto legal após ser estuprada por seu tio, mobilizando várias instituições estatais para tentar impedir o procedimento médico. Eventualmente, a menina teve que ser transferida para outro estado para realizar o aborto legal.

Na política externa, a eleição de Bolsonaro provocou uma reviravolta de 180 graus na posição do país. Até então reconhecido mundialmente como um defensor do universalismo dos direitos humanos, o Brasil fez da luta contra a "ideologia de gênero" uma de suas bandeiras principais, fortalecendo assim seus laços com a Arábia Saudita, Egito e Iraque.

Polônia: fundamentalismo religioso católico

A Polônia é outro ator importante na luta internacional contra a justiça reprodutiva. Em 2019-20, a reeleição do ultra-conservador Andrzej Duda como presidente e a maioria parlamentar conquistada pelo partido nacional-conservador PiS (Lei e Justiça) solidificaram o domínio da direita sobre os principais órgãos políticos da Polônia.

A relação estreita e há muito estabelecida entre o governo e a Igreja Católica Polonesa tem se tornado cada vez mais evidente nos últimos anos. Ao lado do PiS, o grupo de lobby jurídico Ordo Iuris e a "ativista anti-aborto" Kaja Godek, chefe da Fundação Vida e Família, representam os dois principais atores na luta contra o aborto.

Essas organizações cristãs de direita radical concentram-se em questões como divórcio, contracepção, acesso ao aborto e orientação sexual. Os especialistas da Ordo Iuris ocupam (ou já ocuparam) cargos no governo, incluindo a Suprema Corte e o Ministério das Relações Exteriores.

Além do lobby na política interna, esses grupos também fazem parte de uma rede global de organizações cristãs fundamentalistas que envolve o movimento secreto de enormes somas de dinheiro entre países-chave, incluindo Brasil, França, Polônia e EUA. Em particular, a Ordo Iuris tem laços estreitos com o movimento Tradição, Família e Propriedade (TFP) no Brasil.

O acesso ao aborto é um alvo chave para estes grupos e uma das principais questões da sociedade civil na Polônia. No centro destas controvérsias está o aborto por deformidade fetal - o chamado "aborto eugênico" - que atualmente representa 98% de todos os abortos legais realizados na Polônia. Em outubro de 2020, o Tribunal Constitucional polonês considerou esta isenção como inconstitucional, e em janeiro de 2021 a sentença se tornou lei, colocando assim uma proibição de fato ao aborto no país.

Egito: regulamentação estatal e moral pública

Quanto ao Egito, a influência das perspectivas conservadoras e religiosas sobre questões sexuais e reprodutivas aumentou na era pós-colonial. Desde 1923, as constituições egípcias contêm artigos que estabelecem a família heterossexual como a "unidade básica da sociedade".

Liderados pelos EUA, Brasil e Egito, a Declaração de Consenso de Genebra é hoje a expressão mais forte de um movimento ultra-conservador contra a justiça reprodutiva

Sucessivos regimes, incluindo os de Nasser (1954-70), Sadat (1970-81) e Mubarak (1981-2011), mantiveram esta concepção, enquanto a lei islâmica Sharia é a fonte da legislação para assuntos conjugais e privados, não deixando espaço para trajetórias não heterossexuais. Assim, o corpo se tornou uma responsabilidade do Estado e não dos indivíduos. Isto se refletiu na criminalização de quaisquer relações sociais e sexuais que não estejam de acordo com a formação de uma família heterossexual.

O atual presidente Abdel Fatah al-Sisi, ex-general e diretor da inteligência militar, liderou um golpe militar contra a Irmandade Muçulmana em 2013. O regime de Sisi se apresenta como um "virtuoso" substituto da Irmandade, tentando agradar a maioria conservadora do país. Isto inclui a restrição da justiça reprodutiva.

Atualmente, o aborto é um crime no Egito. A única exceção é se a gravidez ameaçar a vida da mulher grávida. Isto tornou o aborto inacessível e inseguro, forçando as mulheres com gravidezes indesejadas a arriscar suas vidas em condições insalubres, onde podem ser subjugadas à exploração sexual e financeira por médicos e farmacêuticos.

A dependência dos fundos de desenvolvimento provenientes do exterior fez o Egito procurar fortalecer suas relações com os EUA (sob Donald Trump), tornando-se um parceiro ativo na luta global contra a justiça reprodutiva. O regime de Sisi também fortaleceu seus laços com aliados conservadores como o Brasil através da promoção do comércio exterior, turismo e investimento financeiro.

Declaração de Consenso de Genebra

A Declaração de Consenso de Genebra assinada em 22 de outubro de 2020 por 34 países – liderados pelos EUA, Brasil e Egito, incluindo a Polônia – é a expressão mais forte de um movimento ultra-conservador contra a justiça reprodutiva em décadas.

A chegada do novo governo do presidente Biden e a consequente saída dos EUA do Consenso de Genebra em janeiro de 2021, deram um duro golpe a esta "aliança diabólica"

A afirmação de que a família tradicional está sob ataque permanente, que a interrupção voluntária da gravidez não deve ser considerada parte do planejamento familiar e que o direito ao aborto não existe, mostra os claros desafios que esses governos de direita colocam para as diretrizes sobre justiça reprodutiva produzidas por entidades internacionais.

A chegada do novo governo do presidente Biden e a consequente saída dos Estados Unidos do Consenso de Genebra em janeiro de 2021, deram um duro golpe a esta "aliança diabólica". Entretanto, a continuidade no poder dos governantes do Brasil, Polônia e Egito, seu contínuo apoio político interno e suas grandes redes de apoio ideológico e financeiro, tornam suas chances de um possível colapso bastante reduzidas.

Nós, ativistas feministas de todo o mundo, nos levantamos contra este ataque global à justiça reprodutiva, defendendo nossa autonomia corporal e nosso direito de escolha. E à medida que a extrema-direita se aproxima cada vez mais, também precisamos urgentemente permanecer unidas e fortalecer nossos laços. É mais do que tempo.

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