democraciaAbierta: Analysis

Como sobrevivem as democracias? Lições do Brasil

A democracia brasileira pode emergir fortalecida do 8 de janeiro, desde que não se repitam os erros do passado

Daniel Cerqueira
17 Fevereiro 2023, 10.00
Cavalaria policial na rampa do Palácio do Planalto, em Brasília, em 8 de janeiro, durante tentativa de golpe
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Foto Arena LTDA/Alamy Live New

A ascensão de Bolsonaro ao poder em 2018 e o apoio popular que ainda desfruta mostram a distopia informacional e a incapacidade dos partidos com vocação democrática de cerrar fileiras contra demagogos sem vocação.

Este artigo comenta alguns fatores que permitiram à democracia brasileira sobreviver a quatro anos de constantes excessos autoritários nas mãos de Bolsonaro e do clamor de parte da sociedade e das Forças Armadas para que o resultado oficial das eleições presidenciais de 2022 fosse ignorado.

Como ponto de partida, o termo "bolsonarismo" aqui utilizado transcende um mero apoio ao ex-presidente, e caracteriza o vínculo identitário que une milhões de pessoas convencidas de que as regras do jogo eleitoral, do STF (Supremo Tribunal Federal) e de outras instâncias do Estado foram co-optadas pela esquerda.

O bolsonarista ortodoxo tende a acreditar que a ciência, a educação, as artes e os códigos morais foram contaminados por ideias esquerdistas, em detrimento dos valores tradicionais inerentes à nação brasileira.

Segundo o cientista político Francisco Bosco, o bolsonarismo é produto da hiperpolarização de nossos tempos, agravada pela quebra de dois preceitos fundamentais identificados por Levitsky e Ziblatt em "Como as democracias morrem": autocontenção contra as regras básicas e não escritas do jogo democrático e a aceitação do adversário político como ator legítimo desse jogo.

No contexto brasileiro, Bosco aponta que esses preceitos foram igualmente violados pelos dois partidos que dominaram o cenário eleitoral brasileiro desde o fim da ditadura militar (1964-1985) e a volta do sufrágio eleitoral gratuito (1989), o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

Em sua criação (1980 e 1988, respectivamente), o PT e o PSDB compartilhavam o desejo de restaurar a democracia após 21 anos de supressão das liberdades políticas. Com o tempo, a disputa pelo poder fez com que buscassem se anular política e discursivamente. A anulação política se manifestou, por exemplo, nos inúmeros pedidos de impeachment formulados pelo PT contra o ex-presidente e líder social-democrata Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e na conspiração deliberada do PSDB pelo impeachment sofrido por Dilma Rousseff em 2016.

A anulação discursiva traduziu-se no mantra petista de que o PSDB havia se tornado uma monstruosidade neoliberal da extrema direita, responsável por uma década de perdas econômicas e sociais. A oposição do PSDB foi ainda mais implacável, principalmente na gestão de Dilma Rousseff, tendo usado slogans como “o PT tem o monopólio da corrupção” ou “qualquer alternativa é melhor que a esquerda”. Tais slogans seriam munição de alto calibre para Bolsonaro nas próximas eleições.

O legado mais nefasto de Bolsonaro foi disseminar entre militares e policiais a convicção de que um golpe não é apenas uma opção válida, mas desejável

Em meio a essa guerra, a alternativa eleita em 2018 (democraticamente, diga-se) se revelou a pior possível; multiplicou esquemas de corrupção, nepotismo e opacidade na gestão pública, promoveu boicote à ciência e à Amazônia, entre outros desastres.

Mas o legado mais nefasto dos quatro anos de Bolsonaro foi provavelmente ter disseminado em um segmento importante da sociedade, as Forças Armadas e a polícia, a convicção de que um golpe de Estado não é apenas uma opção válida, mas desejável.

Em um contexto político e social tão desfavorável, a questão que se coloca é como a democracia brasileira conseguiu sobreviver? A primeira condição era, claro, evitar um segundo mandato de Bolsonaro. Normalmente, os autocratas que chegam ao poder por meio de eleições livres precisam de pelo menos dois mandatos consecutivos, um mínimo de apoio popular e apoio das Forças Armadas para se tornarem ditadores.

Alberto Fujimori deu um golpe cívico-militar já em seu primeiro mandato, mas é uma exceção à regra. Veja-se, por exemplo, Orbán na Hungria, Putin na Rússia, Chávez-Maduro na Venezuela e Ortega na Nicarágua, que promoveram profundas mudanças no jogo de xadrez político-institucional para se perpetuarem no poder após um segundo mandato.

A aproximação do PT com o centrão, a construção de uma frente ampla com alguns partidos de centro-direita e o pragmatismo com que Lula buscou se aproximar de setores conservadores do eleitorado, principalmente no segundo turno, foram decisivos para evitar um segundo mandato de Bolsonaro e, aliás, evitar um golpe nas instituições democráticas do país.

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Os ataques em Brasília exigem do governo Lula postura firme contra golpistas de Bolsonaro, seus apoiadores e financiadores

Abordada a derrota de Bolsonaro, resta investigar por que o Brasil não realizou uma tentativa de golpe entre o anúncio da vitória de Lula, em 30 de outubro de 2022, e sua posse como presidente, em 1º de janeiro de 2023.

A julgar pela insistência do ex-presidente e seus seguidores de que o segundo turno eleitoral teria sido fraudado (o primeiro não foi contestado, uma vez que nele a direita conquistou maioria no Congresso e nos principais governos), a possibilidade de um colapso institucional era considerável.

Prova adicional do espírito golpista foi o rascunho de decreto para intervir to Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para modificar o resultado do segundo turno, apreendido na residência do ex-ministro da Justiça de Bolsonaro e recém-nomeado secretário de Segurança do Distrito Federal, atualmente em prisão preventiva e investigado por omissão em relação aos atos de insurreição cometidos por bolsonaristas radicais em 8 de janeiro, em Brasília.

A primeira razão pela qual o golpe não se concretizou é a confiança que a maioria da população e a comunidade internacional depositam no sistema eleitoral brasileiro. O aparato de desinformação usado durante, depois e vários meses antes das eleições não foi capaz de transcender o metaverso informacional de Bolsonaro. Por mais barulhentos que sejam os milhões de brasileiros que acreditam no mito da fraude nas urnas, eles são um contingente minoritário da população.

O segundo motivo foi a mobilização da sociedade civil, dos formadores de opinião e da mídia que buscou, por um lado, esclarecer informações falsas sobre a integridade do processo eleitoral e, por outro, alertar a opinião pública, organismos internacionais e governos de países com importantes relações diplomáticas e econômicas com o Brasil, dos riscos de uma reversão abrupta do resultado oficial das eleições.

Da mesma forma, o TSE teve papel fundamental no combate às fake news sobre a integridade das urnas eletrônicas e apuração eleitoral como um todo e a outras mentiras que circulam até hoje no submundo das redes sociais.

O fortalecimento da cultura democrática no Brasil passa por desestimular a inclinação das Forças Armadas a atuarem como poder moderador

Apesar da falta de apoio orgânico das forças de segurança para a via antidemocrática, não faltam indícios de que o quartel-general do Exército em Brasília agiu de forma irresponsável em pelo menos três ocasiões em que radicais acampados em frente à referida instalação buscavam truncar a transição pacífica de poder: invasão de prédio da Polícia Federal e depredação de veículos e bens públicos em 12 de dezembro de 2022 em Brasília; a instalação de explosivos em um caminhão, desativado antes de uma tentativa de atentado terrorista no aeroporto da capital, dias antes da posse de Lula; e os ataques à Praça dos Três Poderes, em 8 de janeiro de 2023, data que viverá na infâmia da história brasileira.

Considerações finais

Tendo resistido um de seus dias mais longos, a democracia brasileira pode sair mais forte, desde que os erros do passado não sejam repetidos. Após o referido Movimento de 11 de Novembro, Juscelino Kubitschek adotou uma postura conciliatória com os militares e civis que tentavam anular as eleições.

Dias depois de sua posse, em janeiro de 1956, dirigentes da aeronáutica favoráveis ​​à ruptura institucional se rebelaram na base de Jacarecanga, no norte do país. Com o apoio de Kubitschek, o Congresso concedeu anistia a todos os que participaram da conspiração, inclusive os rebeldes de Jacarecanga, e um número inédito de militares passou a exercer funções civis no governo.

A impunidade diante da sedição e a constante interferência dos generais na política entre o segundo governo de Getúlio Vargas (1951-1954) e o conturbado mandato de João Goulart (1961-1964), foram o prelúdio do golpe militar de 31 de março de 1964.

O fortalecimento da cultura democrática no Brasil passa por desestimular a inclinação das Forças Armadas a atuarem como uma espécie de poder moderador e garantir a sanção daqueles que atentaram contra a democracia e os três poderes da República nos últimos meses.

É importante ter em mente que Bolsonaro conspirou impunemente contra o resultado das eleições, mesmo antes de sua realização; porque o procurador-geral da República, Augusto Aras, sempre atuou como capataz de seus desígnios pessoais. A primeira e única vez que Aras incluiu Bolsonaro em uma investigação preliminar por crimes contra a ordem democrática ocorreu há poucos dias, quando já estava na Flórida com o chapéu de ex-presidente.

Portanto, é essencial expurgar o partidarismo do governo e do sistema de justiça. Nesse sentido, considero inapropriado a possibilidade de Lula nomear um próximo procurador-geral da República, em setembro deste ano, fora da lista tríplice proposta pelos procuradores da República. Iniciado pelo próprio Lula em 2003, esse mecanismo de seleção foi respeitado por cada um dos presidentes que o sucederam, com exceção de Bolsonaro.

Afastar-se dos hábitos antirrepublicanos de Bolsonaro e abster-se da tentação de nomear ministros do STF e procuradores-gerais subservientes seria um exercício de autocontrole que daria uma dose de vitalidade à democracia brasileira.

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