
Covid-19 e a Amazônia: os pulmões do mundo estão morrendo por falta de oxigênio
As autoridades devem ter um cuidado especial para proteger essas comunidades, mas a distância, o desprezo e o racismo histórico não parecem permitir. Español

Entender uma grande crise global como a pandemia de Covid-19 é particularmente complexo. As realidades sócio-econômicas e demográficas são diferentes, os contextos sanitários são diversos, as fontes de informação são díspares e não resta opção que não comparar números, talvez porque os números têm um ar de objetividade e neutralidade que outras fontes de informação não têm.
Porém, obcecados com os números das grandes manchetes, tendemos a esquecer regiões afetadas pelos mesmos desastres que não são acompanhadas por números exorbitantes que atraem a atenção.
Assim, muitas vezes são as regiões esquecidas, habitadas por populações particularmente vulneráveis, que escapam à atenção das políticas públicas e ao escrutínio da mídia, e pagam o preço mais alto.
Hoje, três meses após os casos de coronavírus começarem a crescer exponencialmente na Itália e colocarem o mundo em alerta vermelho, a pandemia está atingindo a América Latina e é aqui que algumas das populações vulneráveis estão sofrendo as consequências mais graves da crise de Covid-19, especialmente as da bacia amazônica.
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"Os pulmões do mundo estão morrendo por falta de oxigênio e essa é nossa triste realidade", disse Carlos Calampa, o diretor de saúde da região amazônica de Loreto, uma das regiões mais afetadas pelo coronavírus no Peru, sobre a falta de ventiladores.
Brasil
Com 20 mil mortes e mais de 300 mil casos confirmados, o Brasil tem a maior taxa de infecção em toda a América Latina e a terceira maior do mundo, somente depois dos Estados Unidos e da Rússia. O mais preocupante é que a epidemia no Brasil não é apenas uma ameaça para si mesmo, mas também para todos os seus vizinhos, especialmente aqueles que compartilham a imensa bacia amazônica.
Dentro de suas fronteiras, o vírus está se espalhando a toda velocidade, chegando a lugares isolados onde não existem hospitais de grande porte com capacidade de internação de pacientes.
Pacientes em estado grave precisam ser transferidos de avião para Manaus, capital do Amazonas, onde estão localizadas as únicas unidades de terapia intensiva da região. Mas os aviões, quando disponíveis, não podem pousar em lugares sem iluminação à noite. Se alguém precisa ser internado após o pôr-do-sol, tem que esperar até o amanhecer para ser transportado.
Segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB), já existem pelo menos 435 casos confirmados de Covid-19 entre os povos indígenas, 91 mortes e 145 casos suspeitos. Por medo do contágio, muitos membros de comunidades indígenas estão deixando as aldeias para montar acampamento no coração da floresta.

Os indígenas, que enfrentam políticas discriminatórias da administração Bolsonaro desde que tomou posse em janeiro de 2019, acusam o governo de usar a pandemia para fazer avançar sua "guerra" contra a preservação da região amazônica.
"O vírus já matou muitas populações indígenas no passado. A gente fugia da gripe, da varíola e da febre no meio da mata. Muitos morrendo e ficando para atrás. Pedimos apoio para que mais de 900 mil indígenas que vivem em aldeias e cidades não sejam dizimados. O que se percebe é que o governo federal está contando com vírus para poder dizimar as populações indígenas. A gente vê os braços cruzados do governo no combate ao coronavírus", disse Concita Sompré, da terra indígena Mãe Maria, no município de Bom Jesus do Tocantins, no sudoeste do estado do Pará, segundo a COIAB.
A situação em Manaus é particularmente catastrófica, e as imagens de covas improvisadas escavadas no solo vermelho de seu cemitério já deram a volta ao mundo. Enquanto isso, Bolsonaro confiou a um militar inexperiente a gestão da pandemia, tendo perdido dois ministros da saúde no último mês, em discordância aberta com sua política irresponsável.
Peru
O segundo país mais afetado pela Covid-19 na América Latina é também um país com um grande território amazônico. Com mais de 100.000 casos e mais de 3.000 mortes, o Peru já tem pelo menos 45 fatalidades entre os grupos indígenas.
Na região de Loreto, onde começa o Rio Amazonas, hospitais também estão à beira do colapso, o que levou o governo a transferir uma equipe de saúde, respiradores e outros suplementos de Lima.
No departamento de Ucayali, 45 indígenas da etnia Shipibo Konibo já morreram com sintomas de Covid-19, segundo a Federação das Comunidades Nativas de Ucayali e Tributárias (Feconau). A comunidade indígena Bellavista de Callarú teve seis mortes em apenas uma semana, todas vítimas de Covid-19, segundo uma reportagem da Mongabay. As mortes ocorreram apesar das medidas de isolamento do povo Tikuna estabelecido no norte da Amazônia peruana, na fronteira tríplice com o Brasil e a Colômbia. Mais de 60 pessoas foram infectadas, de acordo com estimativas.
Omar Montes, obstetra do centro de saúde da comunidade, acredita que o contágio ocorreu através de pessoas que tiveram que viajar para Santa Rosa para conseguir ajuda do Estado, de acordo com a Mongabay. Essa cidade está na fronteira com Letícia, Colômbia, e Tabatinga, Brasil, ambas com um grande número de casos.
Colômbia
A área mais afetada em toda a Colômbia está concentrada em Leticia, capital do departamento do Amazonas, na fronteira com o Brasil e o Peru. Lar de cerca de 49.000 pessoas, a cidade já tem mais de 1.000 infecções e 35 fatalidades. O Instituto Nacional de Saúde (INS) está estudando se outras 20 mortes estão relacionadas à doença.
Tendo sobrevivido à exploração e escravidão no passado, e a outros vírus mortais trazidos pelos colonizadores, sua destruição agora seria a continuação de um genocídio histórico
A região possui dois centros médicos, ambos atualmente superlotados e incapazes de lidar com o crescente número de pessoas doentes. Oito pacientes da unidade de terapia intensiva do Hospital San Rafael em Leticia serão transferidos com urgência pela Força Aérea Colombiana para Bogotá.
Leticia é altamente dependente da cidade brasileira de Tabatinga, onde atracam grandes navios que trazem mantimentos de Manaus. Além disso, para as populações locais, a fronteira, em si quase imperceptível, não lhes pertence. Para eles, faz parte da sua vida diária o ir e vir entre as duas localidades para trabalhar, visitar parentes ou ir às compras.
"Leticia depende de muitas das coisas que vêm de Tabatinga, comprar um quilo de arroz trazido de Bogotá nos custa 4 mil pesos; do Brasil, 2 mil pesos", disse Elver Viena, governador da comunidade Jusy Monilla, da etnia Uitoto Ticuna, ao El Tiempo.
Assim que os surtos começaram, o deputado indígena Camilo Suárez, conhecido como o 'deputado da selva', fez um apelo ao Presidente Iván Duque: "A Amazônia está em SOS, Sr. Presidente, a Amazônia é a Colômbia e precisamos da sua ajuda. Nós não estamos preparados para lidar com esta pandemia."
Dias depois, Suárez morreu com sintomas já muito familiares: febre, tosse grave e falta de ar, embora, segundo o INA, sua morte não tem relação com o novo coronavírus.
Equador
Embora o Equador tenha sido altamente impactado pelo novo coronavírus, especialmente em sua segunda maior cidade, Guayaquil, seu território amazônico parecia ter sido poupado.
Mas no domingo passado (17), o Ministério da Saúde Pública do Equador confirmou o primeiro caso de coronavírus na comunidade indígena Waorani da Amazônia.
A paciente é uma mulher grávida de 17 anos. Ela começou a sentir sintomas relacionados ao Covid-19 no início de maio. Hoje ela está isolada em um hospital em Quito.
O governo, juntamente com líderes indígenas, identificou outras 40 pessoas com as quais a jovem mulher teve contato e seis apresentaram sintomas. As comunidades indígenas amazônicas do Equador há muito tempo minimizaram o contato com o mundo exterior, mas teme-se que essa medida de isolamento possa ter chegado tarde demais.
Consequências
O que as evidências mostram é que o coronavírus continua se alastrando perigosamente pelas terras indígenas da Amazônia. Comunidades isoladas e tradicionais estão sendo diretamente ameaçadas pela Covid-19 em toda essa região. Tendo sobrevivido à exploração e escravidão no passado, e a outros vírus mortais trazidos pelos colonizadores, sua destruição agora seria a continuação de um genocídio histórico, e seria imperdoável para o mundo.
Embora a morte de 35 ou 91 indígenas possa não parecer significativa em comparação, para uma comunidade indígena, geralmente pequena em tamanho, composta de 50, 100 ou no máximo 200 indivíduos, representa o colapso de todo um sistema, que nunca estará preparado para responder a um vírus originário de 20.000 quilômetros de distância, do outro lado do mundo.
As autoridades devem ter um cuidado especial na proteção dessas comunidades, mas os números, o distanciamento, o desprezo e o racismo histórico não estão a bordo. Diante desta realidade, abandonados à sua sorte, a única resposta agora parece ser o retorno ao isolamento total, do qual alguns pensam que nunca deveriam ter saído.
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