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"A ideologia serve para desviar a atenção para algumas coisas, enquanto acontecem outras”

A hegemonia das corporações de média no Brasil é um fenómeno que não tem precedentes na história do país. Não existem notícias equilibradas, livres de manipulação. Entrevista. English Español

Manuel Nunes Ramires Serrano Reginaldo Nasser
15 Junho 2017
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Detalhe de Lenine no trabalho “Man at the Crossroads” (1934) de Diego Rivera. Mural em exposição permanente no Palácio das Belas Artes da Cidade do México. Imagem: Jaontiveros / Wikimedia Commons. Alguns direitos reservados.

Esta entrevista foi realizada no dia 19 de Maio, em Lisboa, na conferência "Mais além das fronteiras: pessoas, lugares, ideias", organizado pela Universidade Autónoma de Lisboa.

Manuel Serrano: durante a conferência, o professor falou do confronto entre as ideologias internacionalistas da Nova Ordem Mundial posterior à Primeira Guerra Mundial. Porque é isto relevante hoje em dia? 

Reginaldo Nasser: no principio, a Primeira Guerra Mundial foi entendida como se fosse mais uma, uma guerra igual às anteriores. Mas após o início do conflito ficou clara uma nova realidade, que tem mais a ver com a sociedade que com a própria guerra: uma sociedade de massas, que se lança para as ruas, que se revolta, que faz greves. Podemos perguntar-nos o que tem isto a ver com a guerra. Mas tem tudo, porque a guerra é uma narrativa, é uma questão que diz respeito à sociedade - é uma produção da mesma. E o tema da guerra passou a ser uma variável importante dentro dos partidos. Isto nunca tinha acontecido. Os partidos começaram a perguntar-se: devemos ir à guerra ou não? E se sim, porquê? Estas questões que num primeiro momento parecem simples foram demolidoras, porque naquele então era impensável alguém dizer que não ia à guerra pelo seu país. Isto tudo devido a quê? Num primeiro momento, ao internacionalismo de esquerda. Se a guerra é entre imperialistas, nós não temos nada a ver com isso, diziam. Portanto, estavam a tentar sobrepor a ideia de identidade internacionalista à identidade nacional.

A guerra é uma narrativa, é uma questão que diz respeito à sociedade - é uma produção da mesma.

Esta questão torna-se crucial com a guerra. E no meio surgem duas questões: na Alemanha há uma divisão dentro do partido social-democrata alemão - naquele então de perfil marxista- entre os revisionistas, como Bernstein, que defendiam que se tinha que reler Marx e que não eram contrários à guerra, e aqueles como Rosa Luxemburgo,que afirmavam não ter sentido um trabalhador entrar na mesma. Na Rússia, deu-se a primeira revolução de Fevereiro, chegando o governo democrata de Kerensky ao poder. É só neste momento que os Estados Unidos – que não tinham interesse em entrar na guerra, mas que torciam para que a Rússia continuasse na mesma – entram, enquanto que os Bolcheviques que chegavam ao poder em Novembro de 2017, queriam abandoná-la – Lenine chegou a apelidá-la como uma guerra “predatória imperialista”.

Wilson e Lenine partilhavam algumas ideias, pese a que os seus pontos de vista, ideias e propostas sobre muitos temas fossem sumamente diferentes. Os 14 pontos de Wilson propunham sobretudo ideias para melhorar a situação exterior, enquanto que as Teses de Abril de Lenine propunham sobretudo ideias para melhorar as coisas na Rússia. Mas ambos estavam de acordo – pelo menos nominalmente – sobre o direito de autodeterminação dos povos que foi – pese à confusão que se produziu depois da guerra – defendido primeiro por Lenine, e não por Wilson.

Seja como for, as suas propostas foram certamente revolucionárias nos tempos em que se viviam e tiveram um papel importante no que aconteceu depois. A diplomacia de gabinete perdeu importância a favor duma diplomacia que tinha que ter em conta as massas e os protestos nas ruas, tendo muitas das suas ideias sido transportadas para o mundo extra-europeu, sobretudo para as colónias. Ali, ironicamente, e pese a defesa do direito à autodeterminação e a desintegração do modelo colonialista por parte de Wilson, imperou um modelo de mandatos: uma ocupação segundo ele, temporária, do território para dotar as pessoas de capacidade de governar, que apresenta diversos paralelismos com a noção actual de Estado Falhado e dos espaços não governados.

MS: John Lewis Gaddis diz, que depois da Guerra Fria Lenine e Wilson trocaram de lugar. Que hoje “Wilson é lembrado como um realista profético, enquanto as estátuas de Lenine estão nas lixeiras do antigo mundo comunista".

RN: na década de 60, de facto, acontecia o contrário. Quem estava no auge era o Lenine. Temos que ter cuidado com esta leitura, porque é muito pós-guerra fria. A ideia do Wilson funciona quando vivemos num mundo em que não existe competição com grandes potências. Com uma grande potência como a União Soviética o jogo é outro. Com a União Soviética suspende-se Wilson. Quando ela cai, recupera-se o Wilson. Estamos a discutir teoria. Uma coisa diferente é como as pessoas aderem às teorias. O Fourier dizia que as pessoas não se tornam marxistas por ler Marx, mas sim por ter um sentimento de injustiça. Eu, por exemplo, deixei de ser marxista quando li Marx.

MS: acredita que hoje vivemos entre dois mundos, entre duas ideologias? Ou que se trata apenas duma luta entre os defensores duma sociedade aberta e os defensores duma sociedade fechada?

RN: veja, tem duas grandes variantes quando falamos de ideologia. Uma, é um conjunto de crenças, ideias, valores: todos nós temos isso. Há sempre diferenças: posso dizer que são de classe - marxismo - ou individuais – liberal. Mas existem. Contudo, a palavra ficou carregada e cada vez que se quer acabar com um debate, dá-se uma solução técnica e diz-que o tempo da ideologia acabou. Neste momento no Brasil há um debate intenso sobre a economia: dizem que a economia não tem discussão, não comporta valores, não comporta ideologia, que são aspectos técnicos. Mas, ironicamente, vivemos num momento em que a ideologia está no seu auge.

O Fourier dizia que as pessoas não se tornam marxistas por ler Marx, mas sim por ter um sentimento de injustiça.

Na tradição marxista pegaram muito nisso, que a ideologia inverte, esconde o real. Então, este também é um factor importante. Você desvia a atenção para algumas coisas, enquanto outras estão a acontecer. O Marxismo trouxe essa coisa de não acreditar no discurso, nas narrativas oficiais, porque escondem mais do que revelam. Então por exemplo, eu posso dizer o seguinte: os papéis federalistas são lindos, mas os que os escreveram eram escravistas. Onde aparece isso? Discutem o o modelo o presidencialismo, o republicanismo. Mas não falam sobre o anterior. Qual o modelo económico? Desigual. Racista. Onde está a discussão disto? É uma ideologia que você escamoteia. Sociedade aberta ou fechada? Eu sei do debate, mas é uma construção. Aberta para quem? Para os negros? Para os latinos?

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Manifestação contra o presidente do Brasil, Michel Temer, em São Paulo. 6 de Junho de 2017. NurPhoto / SIPA EUA / PA Images. Todos os direitos reservados.

MS: como avalia a crise no Brasil? Que espera do futuro? Pode o Brasil ultrapassar esta crise económica e política que parece permear todos os âmbitos da sociedade?

RN: o Brasil atravessou uma fase na qual se produziu uma ascensão social das classes menos favorecidas – uma ascensão socioeconómica – que foi inédita da época da Lula, dos seus dois governos e do inicio do governo da Dilma Rousseff. Isto é um facto. Teve emprego, teve protecção social e muito em termos históricos. Mas nós sentíamos que havia uma reacção contra esta ascensão, sobretudo porque há uma competição. Contra toda mobilização social – como se aprende em sociologia – surge sempre uma reacção.

Contra toda mobilização social – como se aprende em sociologia – surge uma reacção.

O sucesso desse momento deve-se a diversos factores, mas, também, a um momento favorável internacional que o Lula soube aproveitar habilmente. Mas o Lula também fez concessões. Os bancos nesse momento ganharam como nunca, muito mais que as classes baixas. As corporações brasileiras apareceram entre 2007 e 2008 no radar internacional. Cresceram muito – já o tinham vindo a fazer desde a ditadura – sobretudo a nível internacional: foram para Angola, para a Moçambique. Eram elas a Petrobrás, a Vale do Rio Doce…. Isto foi estrutural. Cresceram de braço dado com o poder. Quando o esquema começou a falir, foi o salve-se quem puder. Um professor meu dava um exemplo particularmente ilustrativo: se você encontrar um jabuti encima duma árvore, que pergunta se deve fazer? Não deve discutir em que tipo de árvore está, ou que tipo de animal é, mas sim porque está na árvore. Como consegue um juiz de Curitiba – o Sérgio Morodestruir cinco das maiores empresas do mundo? Porque há uma guerra de corporações no Brasil. Corrupção sempre houve. A questão é porquê a trouxeram a debate agora…. Se essas cinco corporações pagam à Globo, e depois são atacadas pela mesma, então é porque alguém lhes está a pagar mais. Com o Temer estamos a assistir a mais do mesmo, a um problema estrutural. As corporações no Brasil financiam muitos partidos: o PT, os PSDB, o PMDB. As corporações, essas sim, não tem ideologia!

As corporações, essas sim, não tem ideologia.

MS: o senhor recusou dar uma entrevista à Globo. Acredita que os meios de comunicação no Brasil não passam de meras máquinas de manipulação e propaganda?

RN: eu no Brasil não os classifico como meios de comunicação, mas sim como corporações de média. O Glenn Grenwald, do The Intercept mora no Rio. E a sua presença tem tido uma repercussão imensa. Começou a inteirar-se das noticias e provocou uma reacção em cadeia. No Twitter, criticava os jornalistas porque faziam as coisas mal…. Agora abriu uma secção no Brasil. No outro dia dizia aos americanos que não fazem ideia de como as coisas estão no Brasil. Que nos Estados Unidos se queixam do estado dos meios de comunicação. Mas que lá, pelo menos, a CNN, o Washington Post ou o New York Times ainda conseguem ser isentos, ou, pelo menos, equilibrados. No Brasil isto não acontece. Nunca se viu uma hegemonia como a das corporações de média no Brasil. Não há noticias equilibradas ou isentas. Há uma iniciativa no Brasil que se chama Manchetômetro: é uma página web de acompanhamento da cobertura dos grandes meios de comunicação, sobre temas políticos e económicos, que não tem qualquer tipo de ligação com partidos políticos ou grupos económicos. O advogado do Lula usou-o no processo dele. Sabe quantas manchetes/capas do Estadão foram favoráveis ao Lula, ou pelo menos equilibradas? 1%. É um negócio…

Nunca se viu uma hegemonia como a das corporações de media no Brasil.

Então o que aconteceu comigo? Eu ia muito à Globo, mas num determinado momento dei-me conta que estavam a editar várias das minhas falas num programa internacional onde falavam três pessoas. E eram falas, para mim, significantes. Aí eu comecei a afastar-me. E quando começou tudo isto decidi resgatar um principio de desobediência, de boicote. Como eu sou muito da questão Palestina, sou favorável ao BDS (boicotes, desinvestimento e sanções): é um método pacifico, sou contra o uso da violência….Por isso boicoto-os. Porque eles estão 23 horas por dia num tom, concedem-lhe uma hora para falar e depois dizem-lhe que são liberais. Mas é isto, estes são os meios no Brasil, e cada vez estão piores.

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