democraciaAbierta: Opinion

Nossos ancestrais trabalhavam menos e viviam melhor. Onde estamos errando?

Em tempos de prosperidade incalculável e crise existencial, é hora de repensar o trabalho

Ståle Wig
12 Janeiro 2022, 12.01
Um mar de pessoas atravessa a London Bridge durante a hora do rush
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Justin Kase zsixz / Alamy Stock Photo

Antes de terminar este artigo, eu já estava estressada. Era o fim das férias de inverno, mas mesmo assim decidi trabalhar como freelancer. Eu poderia ter escolhido ir a uma praia no fiorde de Oslo, ir ao cinema ou simplesmente sentar-me perto dos pés de tomate na minha varanda. Mesmo assim, aceitei uma tarefa que exigiria muitas horas de trabalho. O estresse que senti conforme o prazo se aproximava criou uma broca familiar no meu estômago. Dormi menos, fiquei mais impaciente e menos presente para os outros. O sol brilhava lá fora, minha conta bancária tinha dinheiro suficiente, mas lá estava eu, trabalhando à luz de um computador.

Como a maioria das pessoas, sinto uma atração curiosa por essa atividade que chamamos de "trabalho". Quando não estou dormindo, tomando banho, cozinhando ou comendo, estou trabalhando. Gosto de horas livres, mas não muitas. Na prisão, os prisioneiros colocados em confinamento solitário imploram para sair para trabalhar. Eles preferem lavar roupa e esfregar o chão do que não fazer nada.

A maioria das pessoas que ganham na loteria não param de trabalhar quando ficam ricos. De acordo com um estudo publicado na Harvard Business Review, quanto mais dinheiro as pessoas ganham, mais elas trabalham. Nos EUA, 62% das pessoas com renda alta trabalham mais de 50 horas por semana. Mais de um terço delas trabalha mais de 60 horas e uma em cada dez trabalha 80 horas por semana. Enquanto isso, seus luxuosos jardins e piscinas permanecem inutilizados vazios e seus carros luxuosos acumulam poeira na garagem.

Preguiça evolutiva

É da nossa natureza querer trabalhar tanto quanto podemos? Talvez a evolução nos tenha feito automaticamente valorizar aqueles que trabalham duro e desprezar aqueles que pões os pés para cima. Talvez estejamos predispostos a ser diligentes.

Em um novo livro, "Trabalho: Uma História de Como Utilizamos o Nosso Tempo", o antropólogo James Suzman chega a uma resposta diferente sobre por que trabalhamos tanto quanto trabalhamos, e muitas vezes muito mais do que o necessário.

Suzman analisa a longa história de trabalho da humanidade, desde quando os primeiros grupos de Homo sapiens começaram a caçar e forragear nas savanas da África, até a sociedade automatizada de hoje. Ele conclui que não é natural que as pessoas trabalhem o tempo todo.

Caçadores-coletores desfrutavam de mais 'lazer' do que a maioria das pessoas no início da era industrial

Humanos habitam a Terra há pouco mais de 300 mil anos e, na grande maioria deles, vivemos de uma maneira completamente diferente da que vivemos hoje. Até cerca de 10 mil anos atrás, quando a revolução agrícola lançou as bases para a sociedade urbana, a maioria das pessoas viviam como caçadores-coletores em pequenos grupos.

Por muito tempo acreditou-se que caçadores-coletores viviam vidas curtas e miseráveis. Quando os primeiros europeus chegaram ao deserto do Kalahari, concluíram que subsistir de animais e plantas deve ter sido uma luta. Mas quando antropólogos começaram a estudar e viver entre esses grupos na década de 1960 – entre nômades no Ártico, aborígines na Austrália, tribos Hadza na Tanzânia –, descobriram que a vida para caçadores-coletores não era uma luta. Pesquisas mostraram que caçadores-coletores comiam alimentos variados e nutritivos. De fato, em muitos casos, comiam 10% mais calorias do que uma pessoa, em média, necessita hoje.

Como os caçadores-coletores não tinham acesso a hospitais modernos, a mortalidade infantil era alta para os padrões atuais. Mas aqueles que chegavam a seu 15º aniversário podiam esperar viver bem mais de 60 anos. Em outras palavras, os caçadores-coletores provavelmente viviam mais do que a maioria das pessoas nas sociedades agrícolas.

O mais surpreendente, porém, não era a expectativa de vida, mas a qualidade de vida. Estudos de campo mostraram que caçadores-coletores obtinham todos os alimentos de que precisavam com esforço mínimo e desfrutavam de mais "lazer" do que a maioria das pessoas no início da era industrial. Os Ju/'hoansi, que viveram no deserto de Kalahari até meados do século passado, gastavam apenas cerca de 15 horas por semana adquirindo os recursos de que precisavam para viver e quase o mesmo tempo cuidando de parentes em casa. Quinze horas por semana é pouco mais do que um trabalhador durante a revolução industrial trabalhava em um dia. Enquanto crianças e adultos trabalhavam até seus pulmões entrarem em colapso nas minas de carvão na Europa, os Ju/'hoansi sentavam-se ao redor do fogo, contavam histórias, dançavam, cantavam e jogavam.

Durante a maior parte de nossa história como espécie, priorizamos nossas vidas de forma diferente do que fazemos hoje. Mesmo o padrão aceito hoje – cerca de 40 horas de trabalho por semana, além de cuidados infantis e tarefas domésticas – parece desnecessariamente tedioso de uma perspectiva histórica.

A caça consumista

Se não é natural trabalhar tanto quanto trabalhamos hoje, talvez seja necessário na sociedade moderna de hoje?

Os empregados nos depósitos da Amazon, os catadores de lixo nos aterros sanitários do Rio e os trabalhadores têxteis em Bangladesh não têm outra escolha a não ser trabalhar longas horas. Como a renda dos trabalhadores é baixa, uma vez que os proprietários colhem a maior parte do lucro, os pobres do mundo têm de batalhar o dia todo para sustentar suas famílias.

Porém, quanto mais subimos na escada social, mais difícil se torna explicar por que trabalhamos tanto. Em um famoso artigo de 1930, o principal economista da época, John Maynard Keynes, previu que em 100 anos a sociedade moderna teria resolvido o problema da escassez econômica. Keynes, portanto, estimou que até 2030, seus netos não teriam que trabalhar mais de 15 horas por semana, como os Ju/’hoansi, graças ao crescimento do capital, produtividade e avanço tecnológico. O futuro seria uma época de “lazer e abundância”.

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A exploração começa com as condições dos trabalhadores. Marx viu isso há 140 anos – e nada mudou desde então

Keynes estava certo sobre uma coisa: o mundo moderno se tornou mais produtivo. No mínimo, Keynes subestimou o quanto o mundo se tornaria mais rico e produtivo. No entanto, Keynes errou ao afirmar que esses avanços também nos levariam a trabalhar menos. Embora seja necessário cada vez menos mãos humanas para produzir o que nossa população precisa, hoje a maioria de nós trabalha tanto quanto na década de 1970. Por quê?

Mesmo que nossas contas bancárias estejam no azul, a maioria de nós continua trabalhando porque tememos que, se pararmos, nossas necessidades ou as de nossas famílias não serão atendidas no futuro. Particularmente em sociedades com pouca ou nenhuma proteção do Estado de bem-estar social, a vida cotidiana é precária, mesmo para aqueles que não estão na base da pirâmide econômica. As pessoas trabalham para se manter à tona.

Mesmo assim, muitos membros da classe média não trabalham apenas para conseguir o que precisam. Eles também trabalham para adquirir tudo o que desejam. O desejo da classe média por mais coisas está enraizado na própria estrutura do capitalismo. Para que nossas economias continuem crescendo, os consumidores devem sempre querer mais. Agora vivemos em uma sociedade de caçadores-coletores onde as necessidades são atendidas, mas onde a caça continua. Outra casa de férias, outro voo transatlântico, um apartamento com vista para o mar.

'Empregos inúteis'

No entanto, a expectativa de aumento do crescimento e do consumo é apenas parte da explicação de por que os mais privilegiados continuam indo trabalhar pela manhã. O trabalho oferece mais do que um salário no fim do mês – também nos dá a sensação de ser um ser humano valioso. Essa ideologia de trabalho prevalece em todo o espectro político. A constituição da União Soviética declarava literalmente que “quem não trabalha, não come”.

Keynes não foi capaz de prever como o trabalho se tornaria o próprio eixo em torno do qual gira a vida no século 21. Quando conhecemos um estranho em uma festa, perguntamos automaticamente: "o que você faz?". Temos pena daqueles que não têm uma boa resposta porque o trabalho tornou-se nossa principal identidade.

Quanto menos 'inútil' for o seu trabalho, maior a probabilidade de você ser mal pago e maltratado no trabalho

Não importa se você tem um dos “empregos de merda” ou "empregos inúteis" (bullshit jobs) descritos pelo antropólogo David Graeber, um em que você participa de reuniões que ninguém presta atenção e escreve relatórios que ninguém lê. O único objetivo é participar do ritual do trabalho, mesmo que seja um inferno das 9h às 18h. Na minha parte do mundo, é preciso ter um emprego para ter uma vida digna. Deve ser um trabalho que pareça legal, onde você trabalha em "projetos" e está terrivelmente ocupado. Idealmente, você deve ter uma "carreira". Para a classe média, não basta mais trabalhar – temos que amar muito o nosso trabalho e estar ocupados o tempo todo.

Parte dessa "caça" moderna é boa. Corremos para criar novos medicamentos e tecnologias que tornem a vida mais fácil. Mas muito estresse é desnecessário. No meu país, a Noruega, o consumo privado dobrou desde 2000. Compramos mais coisas, comemos mais carne e voamos mais. Para dar continuidade a esse estilo de vida, nossos políticos afirmam que também devemos trabalhar mais. Seu objetivo é levar o maior número possível de pessoas para o trabalho assalariado, pelo maior tempo possível.

Precisamos repensar o trabalho

No entanto, algo está mudando sobre nossa concepção do trabalho na sociedade moderna.

No movimento sindical, tornou-se comum discutir as possibilidades de redução da jornada de trabalho para dividir os empregos existentes. Além disso, o fato de as pessoas trabalharem um pouco menos não significa necessariamente que produzirão menos. A Islândia experimentou implementar uma semana de trabalho mais curta para 1% dos funcionários do país. Os resultados são surpreendentes: não apenas as pessoas ficam mais saudáveis ​​e felizes quando trabalham menos, mas produzem tanto quanto antes. Em alguns casos, a produtividade aumenta quando as horas de trabalho diminuem. As pessoas trabalham menos, mas usam melhor o tempo.

A nova conversa sobre trabalho é mais do que apenas trabalhar menos. A pandemia de Covid-19 nos forçou a repensar o que realmente é um trabalho valioso. Muitos notaram que foram precisamente os grupos ocupacionais com os salários mais baixos e status mais baixo – limpeza, transporte e trabalho de cuidado – que impediram que a sociedade entrasse em colapso durante a crise sanitária – enquanto o resto de nós ficou em casa.

Infelizmente, a regra prática é que quanto menos "inútil" for o seu trabalho, maior a probabilidade de você ser mal pago e maltratado no trabalho. Enfermeiras mal pagas correm de casa em casa para ajudar idosos, enquanto consultores de marketing sentam-se na varanda e participam de reuniões do Microsoft Teams. Por que deveria ser assim?

Chegou a hora de repensar a forma como organizamos nosso trabalho.

Quais deveriam ser as características de um trabalho valioso no século 21, tanto o tipo que acontece em um escritório quanto fora dele? Como deveríamos trabalhar em uma época em que a extração corporativa de combustíveis fósseis e o consumo privado estão destruindo o planeta?

Políticos hoje estão discutindo soluções para esses problemas que pareciam utópicos há apenas alguns anos, desde a semana de quatro dias de trabalho até a renda básica universal e a propriedade pública da tecnologia.

Dependendo do resultado desses debates, o futuro pode se assemelhar menos ao inferno que nossos trabalhadores mais vulneráveis ​​vivem e mais o paraíso que Keynes sonhou para seus netos.

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