Migrantes do Haiti em um abrigo na fronteira dos EUA
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Edgard Garrido/REUTERS/Alamy Stock Photo
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Imagens de agentes da Alfândega e Proteção de Fronteiras dos Estados Unidos a cavalo perseguindo haitianos com rédeas horrorizaram a todos – com razão –, mas não deveriam surpreender. Considerando que, durante a crise de refugiados haitianos de 1991 a 1993, o governo de George H.W. Bush enviou 12 mil haitianos para a prisão de Guantánamo, o país já deixou claro qual é sua estratégia para lidar com as vítimas das inúmeras crises no país caribenho.
Os 15 mil haitianos que chegaram à fronteira EUA-México e as deportações em massa pelo governo Biden não são um episódio novo ou inesperado, mas o resultado de mais de um século de crises geradas por inépcia, exploração e fracassos de intervenções internacionais passadas e presentes.
A atual crise no Haiti é complexa e certamente se deve em grande parte à incompetência e à falta de governança no país. Mas ignorar as múltiplas maneiras em que os Estados Unidos contribuíram para a desestabilização do Haiti seria um desserviço histórico. Não é preciso ir muito longe, apesar de que elas certamente acontecem desde sempre.
As conexões entre as agências americanas e o assassinato do presidente Jovenel Moïse são indiscutíveis. Um dos cidadãos americanos detidos em conexão com o crime é um suposto informante da agência antidrogas dos Estados Unidos (DEA), cargo que ocupava há 20 anos. E a DEA atua ativamente no Haiti, onde exerce amplo poder político na ilha, como o "incidente dos narco-sobrinhos" e a captura de Guy Philippe o demonstram.
Poucos dias após o assassinato, o próprio governo haitiano pediu uma intervenção das tropas americanas para proteger a infraestrutura do país diante do caos resultante, declarações que polarizaram o país e a comunidade internacional, dado o legado desestabilizador das intervenções americanas no Haiti.
A ocupação de 1915-1934 ocorreu em circunstâncias semelhantes
Não faz 100 anos que as tropas americanas se retiraram do Haiti, que havia sido a colônia mais lucrativa do mundo, após uma ocupação de quase duas décadas. Não é de estranhar que a ocupação (1915-1934) tenha ocorrido sob a justificativa de que a presença dos Estados Unidos era necessária para estabilizar o Haiti após anos conturbados que resultaram em vários assassinatos, golpes e exílios forçados de líderes – um período de instabilidade que já havia sido influenciado por interesses econômicos estrangeiros.
A morte, em 27 de julho de 1915, do impopular e autoritário Jean Vilbrun Guillaume Sam, que tinha o apoio do governo dos Estados Unidos, gerou uma série de levantes antiamericanos. A ascensão de Rosalvo Bobo ao poder e o sentimento antiamericano na ilha pavimentaram o caminho para uma possível invasão alemã, levando o presidente dos Estados Unidos, Woodrow Wilson, a agir com rapidez para preservar sua influência política e os interesses econômicos do país na ilha.
Em vez da estabilização, como prometido, a presença e subsequente retirada das tropas americanas deixou o país imerso em uma crise institucional que marcou sua história no século 19 – e continua influenciando sua dificuldade de governança até hoje. Em 2015, por ocasião do 100º aniversário da chegada das tropas americanas na ilha, o escritor haitiano-americano Edwidge Danticat argumentou que a désocupation dos Estados Unidos, de fato, nunca aconteceu.
As ocupações dos anos 1990 e 2000 criaram ainda mais desestabilização
Mais recentemente, os Estados Unidos invadiram o Haiti novamente em 1994, após capturar refugiados haitianos que fugiam do país após o golpe militar de 1991 e enviá-los para Guantánamo, um símbolo internacional de injustiça, abusos e violações dos direitos humanos. Apesar disso, os soldados americanos foram recebidos com aplausos e vivas em setembro de 1994, quando o governo Clinton foi forçado a "restaurar a democracia no Haiti" em face de sua incapacidade de lidar com o fluxo de refugiados.
Campo de refugiados haitianos em Guantánamo | Domínio Público
O historiador Robert Fatton argumenta que ambas as intervenções são responsáveis por muitas das crises que assolam o Haiti desde os anos 1990. Isso ocorre, entre outros motivos, porque o retorno de Aristide ao poder negociado pelos Estados Unidos se deu baixo a condição de que o presidente assinasse um acordo com o FMI que resultaria na importação de quase todos os alimentos do país, criando dependência e minando sua produção nacional.
“[Após a intervenção], o Haiti se tornou um país dependente de organizações financeiras internacionais para seu financiamento, seu orçamento – estava e ainda está à mercê do que a comunidade internacional está disposta a dar”, argumenta Fatton.
A ajuda do terremoto de 2010 nunca teve como objetivo estabilizar o Estado haitiano
Essa dependência ficou escancarada após o terremoto de 2010. Considerado um "Estado falido" incapaz de autogoverno, a reconstrução da ilha após uma das piores catástrofes urbanas recaiu sobre a ajuda humanitária, ajuda que, como argumenta o jornalista Jonathan Katz, "nunca foi destinada ao consumo haitiano". Pelo menos 93% dos bilhões de dólares foram reinvestidos na ONU ou em outras organizações não governamentais. Apenas 1% do valor foi para o governo do Haiti, afirma.
O ciclo vicioso é infinito. A solução é incerta. Mas a resposta dos Estados Unidos aos refugiados haitianos em sua fronteira, que se soma à onda migratória da América Central que já enfrenta, deve levar em conta seu histórico de intervenções e influência no Haiti. A insistência na mesma estratégia colonizadora atual de exploração econômica e interferência eleitoral continuará a produzir os mesmos efeitos colaterais.
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