
Assembleia Constituinte do Chile: oportunidade histórica para o povo
Se bem-sucedido, o inovador processo poderia servir de base para repensar modelos em outros países latino-americanos.

No último fim de semana, os chilenos elegeram as 155 pessoas que escreverão sua nova constituição, um evento democrático sem precedentes.
Em outubro de 2020, avassaladores 78% dos eleitores votaram por reescrever a antiga constituição do regime militar do ditador Augusto Pinochet – uma das principais demandas dos manifestantes nos protestos no Chile em 2019.
Nos dias 15 e 16 de maio, além de vereadores e governadores, os chilenos escolheram os membros da Assembleia Constituinte, entre quase 1,3 mil candidatos, por meio de um mecanismo de paridade de gênero único no mundo que garante 45% de assentos a mulheres, além de reservar 17 para constituintes indígenas. Este novo órgão terá nove meses para apresentar um texto constitucional, prazo que pode ser prorrogado em três meses apenas uma vez. Em meados de 2022, os chilenos dever participar de outro plebiscito, no qual o texto da nova constituição elaborada pelos constituintes será aprovado ou rejeitado.
Os resultados desta eleição foram surpreendentes: os grandes vencedores foram os candidatos independentes que, com 31% dos votos, conquistaram 48 assentos. A direita obteve 23,9% dos votos, ou 37 representantes, enquanto a centro-esquerda obteve apenas 25 assentos com 16,1% dos votos, o que a coloca os partidos tradicionais longe dos 52 assentos necessários para determinar o conteúdo da nova constituição.
A esquerda moderada foi inclusive superada pela coalizão de esquerda radical formada pelo Partido Comunista e a Frente Ampla, que agrupa partidos e movimentos nascidos dos protestos universitários de 2011, conquistando 28 deputados e 18,1% dos votos.
O governo foi o primeiro a reconhecer o duro golpe eleitoral. “Os cidadãos nos enviaram uma mensagem clara e forte, tanto ao governo quanto a todas as forças políticas tradicionais: não estamos adequadamente sintonizados com suas demandas e exigências”, disse o presidente Sebastián Piñera.
Os resultados, no entanto, não foram bem recebidos internacionalmente. Na manhã de segunda-feira (17), o dólar americano disparou no Chile devido à incerteza gerada pela derrota do bloco governante e pela eleição de 48 candidatos independentes que não respondem às disciplinas dos partidos. O peso chileno caiu 2,3%, a maior desvalorização desde os protestos de outubro de 2019, e as ações na Bolsa de Santiago caíram mais de 10%.
Da mesma forma, a derrota da centro-esquerda moderada, aliança que permitiu a recuperação da democracia após a ditadura de Pinochet, é uma mensagem por si só: os chilenos não confiam mais na política de dois blocos tradicional do país.
Os chilenos enviariam uma mensagem claro: eles não confiam mais na política de dois blocos tradicional do país
A corrente de mudança que essas eleições trouxeram ao Chile atingiu também prefeitos e vereadores das 346 comunas, ou municípios, que compõem o país. Os chilenos também elegeram os governadores de suas 16 regiões pela primeira vez desde o retorno à democracia, que até agora eram nomeados pelo poder central.
O ABC da assembleia
O que vem depois das eleições?
A nova Assembleia Constituinte deve eleger um presidente e um vice-presidente. Ambos devem ser escolhidos por maioria absoluta. Os representantes escolherão também uma secretaria técnica composta por duas pessoas com as devidas credenciais acadêmicas ou profissionais. Dessa forma, a própria assembleia estabelecerá as regras de seu funcionamento.
Qual é o objetivo da assembleia?
O objetivo da assembleia é único: redigir e aprovar uma nova constituição, não podendo exercer qualquer outra função. Da mesma forma, a elaboração do novo texto deve respeitar a natureza da República do Chile, que é um sistema político regido por leis, por sua democracia de sufrágio universal, por decisões judiciais definitivas e exequíveis e por tratados internacionais em vigor e ratificados pelo Chile.
Como a assembleia tomará suas decisões?
A assembleia deve aprovar as regras da nova constituição e os regulamentos de votação dessas regras por um quórum de dois terços dos seus membros. Busca-se obter um alto grau de consenso no texto constitucional.
Por que se diz que a nova constituição será escrita sobre uma "página em branco"?
A assembleia deverá redigir um texto constitucional inteiramente novo, diferente de uma emenda à Constituição atual. Este novo texto procura adaptar-se, sem restrições do passado, às necessidades do país no século 21.
Podem ser alegadas infrações às regras da assembleia?
Sim, quando uma reclamação é feita, ela terá que ser decidida por cinco ministros da Suprema Corte, escolhidos por sorteio.
Como será realizado o plebiscito para a aprovação da nova assembleia?
Quando a assembleia entregar sua proposta ao presidente, ele convocará um novo plebiscito, que deverá ser realizado 60 dias após a divulgação da convocação. Neste plebiscito, o voto será obrigatório e haverá multa de 0,5 a 3 unidades fiscais mensais para quem puder votar e não o fizer.
Caso a nova constituição seja aprovada, o presidente deve convocar o Plenário do Congresso para que, em ato público, promulgue e jure cumprir a nova constituição, cujo texto será publicado no Diário Oficial da União no prazo de dez dias, data em que entrará em vigor. Se, por outro lado, a nova constituição for rejeitada, a Constituição de 1980 e suas reformas serão mantidas.
Por que esse processo constitucional é histórico e importante para o mundo?
O Chile escolheu um caminho inovador para sair de uma profunda crise social de longa data que se tornou inviável em outubro de 2019.
Ao estabelecer um quorum de dois terços, reduz a possibilidade de choques políticos entre extremos e obriga maior justiça em cada decisão
A nova convenção projetada pelo povo chileno facilitou o processo de candidatura para a Assembleia Constituinte, uma decisão democrática que permitiu a eleição de representantes sem vínculos com o governo conservador ou com a oposição de esquerda.
Além disso, o processo também é inovador na forma como deverá operar. Ao estabelecer um quorum de dois terços, reduz a possibilidade de choques políticos entre extremos e obriga maior justiça em cada decisão. Como o consenso total não existe, o que este novo texto deve buscar é chegar a princípios fundamentais comuns capazes de refundar as bases do Estado social e permitir que o Chile avance em um processo verdadeiramente democrático.
Embora a assembleia não seja capaz de reformar decisões judiciais ou tratados internacionais em vigor, ela será capaz de repensar o papel do Estado. Uma crítica dos chilenos ao Estado atual é que não é um estado social de direito que beneficia os cidadãos. Isso se refletiu em 2019, quando os chilenos se manifestaram por direitos de bem-estar e justiça social, como saúde e educação. Desse forma, a nova constituição pode e deve prever um Estado com função social.
A assembleia também abre espaço para maior reconhecimento dos direitos dos povos indígenas. A Assembleia Constitucional inclui 17 representantes dos dez povos originários do Chile reconhecidos pelo Estado e abordará questões difíceis, como propriedade de terra.
O processo também poderá questionar o regime de governo. O Chile tem um regime presidencialista, onde o presidente monopoliza o Executivo, modelo que vem recebendo críticas crescentes.
A nova constituição também afetará a região através de seus imigrantes. O Chile é um país de destino na América Latina por ter uma economia estável que oferece oportunidades. A população estrangeira aumentou 19,4% nos últimos três anos, chegando a um total de 1,5 milhão de migrantes. Representando 7,6% da população total do Chile, esses cidadãos devem ser considerados no novo texto.
O Chile, como poucas nações o fizeram, gerou a oportunidade de reformar as bases de seu Estado. É, sem dúvida, um acontecimento histórico, uma experiência que abre as portas para que a região formular um sistema democrático diferente, nascido das reais preocupações sociais dos cidadãos e não exclusivamente de juristas, constitucionalistas, lobistas e políticos profissionais.
Não será um processo fácil. Os poderes fáticos e tradicionais resistirão a abrir mão de seus privilégios, e a complexidade da tarefa de refundação revelará contradições e limitações estruturais. Mas a composição da Assembleia Constituinte resultante das eleições do último fim de semana traz esperança ao Chile e ao mundo. Se bem-sucedido, o inovador processo chileno poderá servir de base para repensar os modelos de outros países latino-americanos, onde o descontentamento social está no limite.
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