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A Comissão e a Corte Interamericana: direitos humanos diante do vírus

Qual tem sido a resposta desses dois órgãos ao aprofundamento da pandemia?

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Miguel González Palacios
11 Setembro 2020, 3.45
Caso Herzog/CorteIDH/Flickr/CC BY-SA 2.0

A pandemia de Covid-19 agravou a difícil situação dos direitos humanos na América Latina. Além do trágico saldo de mortes, as medidas de contenção adotadas pelos governos, em sua maioria baseadas em estados de emergência, tiveram um alto custo para a garantia desses direitos.

Mas a região tem um sistema de instrumentos internacionais – o mais antigo do mundo – criado precisamente para salvaguardar os direitos das pessoas no hemisfério, materializado na Comissão e Corte Interamericana de Direitos Humanos. Qual tem sido a resposta desses dois órgãos ao aprofundamento da crise?

Os instrumentos

O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos nasceu com a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, promulgada em abril de 1948 durante a IX Conferência Internacional Americana em Bogotá, evento que também viu a assinatura da Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA). A Declaração Americana foi o primeiro documento internacional de direitos humanos no mundo e foi um dos mais importantes precedentes da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, adotada oito meses depois.

No entanto, sua existência não tem sido uma garantia do cumprimento dos direitos humanos na região, que vive há décadas sob regimes particularmente nocivos e abusivos que se revelaram muito perniciosos para as garantias dos direitos básicos dos cidadãos.

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Uma das missões da OEA consagradas em seu tratado fundador é consolidar "um regime de liberdade individual e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem" no hemisfério americano. Para isso, estabeleceu a necessidade de criar uma comissão para promover o respeito a esses direitos e um tribunal para garantir sua proteção por um órgão jurídico competente.

No entanto, foram necessários vários anos para que estes órgãos se tornassem operacionais. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) iniciou suas operações em 1959, 11 anos após a Declaração, enquanto a Corte Interamericana de Direitos Humanos foi criada 10 anos depois, através da Convenção Americana de Direitos Humanos, assinada em San José, Costa Rica, em 1969.

A Convenção, também conhecida como Pacto de São José, definiu os direitos que os Estados se comprometem a respeitar, assim como os poderes e procedimentos tanto da CIDH como da Corte para garantir seu cumprimento. Entretanto, a Corte não iniciou sua sessão até setembro de 1979, em grande parte devido à relutância dos governos nacionais, muitos deles autoritários na época, em reconhecer uma corte internacional que pudesse julgá-los por suas ações.

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Desde então, outros instrumentos legais foram incorporados ao Sistema Interamericano, mais notadamente a Carta Democrática Interamericana. Adotada em 2001 como ferramenta de atualização da Carta da OEA, ela reafirma que a garantia dos direitos humanos é uma condição fundamental para a existência de uma sociedade democrática e que esta, por sua vez, é uma condição indispensável para o exercício efetivo dos direitos humanos.

Os órgãos

Com sede em Washington, D.C., a CIDH é composta por sete membros que servem em sua capacidade pessoal e não como representantes de seus países. Eles são eleitos pela Assembleia Geral da OEA para um mandato de quatro anos, com a possibilidade de serem reeleitos apenas uma vez. Os membros atuais são seu presidente Joel Hernández do México, as vice-presidentes Antonia Urrejola e Flavia Piovesan do Chile e Brasil, respectivamente, e as comissárias Margaret May dos Estados Unidos, Esmeralda Arosemena do Panamá, Julissa Mantilla do Peru e Edgar Ralón da Guatemala.

A CIDH é o órgão consultivo da OEA em questões de direitos humanos. Entre suas muitas funções, a CIDH monitora a situação dos direitos humanos no hemisfério, realiza visitas de coleta de informações aos países e recomenda aos Estados medidas que contribuam para a proteção dos direitos de seus habitantes.

A Comissão também recebe e investiga petições individuais sobre supostas violações de direitos humanos, apresenta casos à Corte Interamericana e solicita aos Estados membros que adotem medidas preventivas para evitar danos irreparáveis aos direitos humanos em casos graves e urgentes.

Por sua vez, a Corte Interamericana de Direitos Humanos é o tribunal encarregado de aplicar e interpretar a Convenção Americana. Ao contrário da CIDH, a Corte não é um órgão da OEA, pois foi estabelecida pela Convenção Americana, que só foi ratificada por 25 dos 34 países membros da OEA, com as notáveis exceções do Canadá e dos Estados Unidos, bem como de Cuba, que não é membro ativo desta organização.

Uma das inovações legais mais importantes no contexto da pandemia é o reconhecimento do direito de luto dos familiares das vítimas fatais da Covid-19

O Tribunal é composto por sete juízes, que, como os Comissários da CIDH, são eleitos pela Assembleia Geral da OEA em sua capacidade pessoal e não como representantes de seus países, por um período de seis anos, com a possibilidade de uma única reeleição. Os juízes atualmente no Tribunal são: a presidente Elizabeth Odio da Costa Rica, o vice-presidente Patricio Pazmiño do Equador, Eduardo Vio do Chile, Humberto Sierra da Colômbia, Eduardo Ferrer do México, Eugenio Raúl Zaffaroni da Argentina e Ricardo Pérez Manrique do Uruguai.

A Corte tem quatro funções principais: determinar a responsabilidade dos Estados pelas violações de direitos reconhecidos no Sistema Interamericano, supervisionar o cumprimento de suas decisões, responder às consultas dos órgãos da OEA e de seus países membros a respeito da interpretação dos instrumentos do Sistema Interamericano e emitir medidas provisórias para evitar danos irreparáveis às pessoas em casos de extrema gravidade e urgência.

Ativando defesas contra a pandemia

Desde o início da pandemia, tanto a CIDH como a Corte conclamaram os Estados a adotar medidas para enfrentar a crise sanitária com base no pleno respeito aos direitos humanos, especialmente para os grupos mais vulneráveis, como as comunidades indígenas e afrodescendentes, idosos, populações carcerárias, migrantes, entre outras.

Para isso, a CIDH emitiu a Resolução 1/2020 com 85 recomendações para os países da OEA e criou a Sala de Coordenação e Resposta Oportuna e Integrada (SACROI) para coordenar mais eficientemente o trabalho de seus diversos departamentos. Da mesma forma, até hoje a CIDH concedeu dois dos mais de 200 pedidos de medidas cautelares que recebeu em relação à pandemia: um para a proteção dos povos indígenas Yanomami e Ye'kwana na Amazônia brasileira e outro em favor de Facundo José Astudillo, desaparecido desde 30 de abril quando foi detido por policiais argentinos enquanto viajava em uma estrada durante a quarentena.

Por sua vez, o Tribunal concedeu recentemente medidas urgentes de proteção para mais de 1.600 migrantes detidos nas estações La Peñita e Laja Blanca, no Panamá, perto da fronteira com a Colômbia, obrigando o Estado panamenho a resolver a situação de superlotação o mais rápido possível e a garantir o direito à saúde dessas pessoas.

Entretanto, uma das inovações legais mais importantes no contexto da pandemia é o reconhecimento do direito a luto dos familiares das vítimas fatais da Covid-19, como parte de seus direitos à saúde mental e a uma vida digna. A Resolução 4/2020 adotada no final de julho pela CIDH, afirma que os Estados devem proibir o enterro e a cremação de restos mortais que não tenham sido identificados, bem como garantir o retorno destes aos seus parentes e permitir-lhes realizar ritos funerários segundo com suas tradições e costumes.

Os mecanismos multilaterais têm um papel fundamental na proteção dos direitos humanos e ainda mais na América Latina, marcada pela fragilidade institucional, discriminação e desigualdade

Outros direitos que assumiram especial relevância são o acesso à informação pública e a proteção de dados pessoais. Nesse contexto, a Declaração 1/2020 do Tribunal considera que o acesso a informações verdadeiras e confiáveis é essencial para garantir o direito à saúde e, portanto, os Estados devem garantir que as pessoas em situação de marginalização tenham acesso a informações sobre a pandemia e sobre medidas de contenção. A mesma declaração afirma que os Estados devem garantir que o uso de tecnologias para monitorar e acompanhar a disseminação do Covid-19 não infrinja a privacidade dos indivíduos ou o princípio da não-discriminação.

Ameaças ao seu funcionamento

Os mecanismos multilaterais têm um papel fundamental a desempenhar na proteção dos direitos humanos e ainda mais em uma região como a América Latina, marcada pela fragilidade institucional, discriminação e desigualdade. Agora, mais do que nunca, o trabalho da CIDH e da Corte é essencial para salvaguardar estes direitos em meio a uma crise sanitária, econômica, social e política sem precedentes.

A pandemia não só gerou um maior número de violações dos direitos humanos, mas também afetou o andamento das atividades dos órgãos multilaterais. E embora tanto a Corte quanto a CIDH tenham feito um esforço para se pronunciarem de forma ágil e oportuna, as restrições à mobilidade podem ter o efeito de retardar seus processos – antes da pandemia, a Corte levava em média 22 meses para processar um caso. A impossibilidade de realizar visitas aos países também significa que ambos os órgãos perdem uma forma valiosa de obter informações diretamente das pessoas afetadas por essas violações, particularmente aquelas com menos acesso à tecnologia que não podem participar de audiências virtuais.

Outro fator que limita o alcance da resposta desses órgãos é a ausência de mecanismos para influenciar diretamente os atores privados, que intervêm mais que os Estados no exercício efetivo do direito à saúde, ao luto, ao acesso à informação e à privacidade dos dados pessoais, para citar apenas alguns.

Finalmente, vários governos da região são cada vez mais antagônicos ao multilateralismo e menos interessados no respeito aos direitos humanos, considerando até mesmo processar a Convenção Americana para suspender a jurisdição da Corte em seus países. Embora isso não seja fácil de conseguir, dois países já o fizeram no passado: Trinidad e Tobago em 1999, para continuar aplicando a pena de morte, proibida pelo Sistema Interamericano, e a Venezuela em 2013, acusando a Corte e a CIDH de responder aos "interesses imperialistas" dos Estados Unidos, embora tenha sido finalmente reintegrada em 2019.

A pandemia é uma oportunidade para o Sistema Interamericano demonstrar sua verdadeira utilidade na defesa dos direitos dos cidadãos e sua capacidade de fazer com que os Estados, sempre superprotetores de sua soberania e relutantes em serem auditados por órgãos multilaterais independentes, demonstrem seu compromisso inequívoco com os direitos humanos. Como acontece na maioria das grandes crises, os mais afetados são os mais vulneráveis, que na América Latina são legiões.

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