
Promessa verde da nova Constituição chilena está ameaçada
O plebiscito de 4 de setembro pode fazer do Chile um líder mundial em ação climática e ecológica. Mas rejeição é alta


Em 4 de setembro, o Chile poderá mudar radicalmente o curso de sua história. Mais de 15 milhões de pessoas terão que votar, compulsoriamente, em um plebiscito para aprovar ou rejeitar a nova Constituição, que começou a ser escrita em julho de 2021 em resposta às históricas mobilizações do final de 2019, conhecidas como “surto social”.
Se a opção "aprovo" vencer, o país finalmente virará a página escura de sua ditadura. Embora tenha terminado oficialmente em 1990, o governo militar de Augusto Pinochet ainda serve como principal âncora para o atual sistema político, econômico e social através da Constituição de 1980.
Mas, além disso, o novo texto constitucional cria normas, direitos e obrigações para o Estado e a sociedade que podem levar o Chile à vanguarda da ação contra a crise climática e ecológica. Também pode promover uma mudança no modelo de desenvolvimento econômico extrativista que devasta a América Latina.
Uma transformação urgente
O Chile é conhecido por seus abundantes recursos minerais. Além de abrigar as maiores reservas de cobre e lítio do mundo, o país atrai milhões de turistas todos os anos interessados em seus rios, lagos e geleiras e em provar as riquezas de seus mares, que se estendem da Antártida até a Ilha de Páscoa, a mais de 3,7 mil km da costa, no Oceano Pacífico.
Mas o Chile também é um dos países mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas. O último relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) da ONU, publicado em fevereiro de 2022, alertou que o país será cada vez mais afetado pelo aumento drástico da temperatura, baixa pluviosidade, derretimento de geleiras e erosão costeira. Soma-se a isso a crescente ocorrência de eventos extremos e desastres naturais, como ondas de calor cada vez mais devastadoras, terremotos e tsunamis.
Hoje, mais de 8 milhões de pessoas sofrem os efeitos da "mega seca" que assola o país desde 2008. Das 345 comunas – ou municípios – do país, mais da metade está sob decretos de escassez de água — alguns há mais dez anos consecutivos.
A falta de chuvas é especialmente aguda no centro-sul do país, onde vive a maior parte da população. Alguns locais registram uma redução de mais de 70% em relação à média histórica de chuvas. O cenário é ainda mais complexo nas áreas rurais, onde o racionamento de água já faz parte do novo normal. Milhares de pequenos agricultores perderam seus animais e colheitas, sofrendo grave deterioração de sua qualidade de vida devido às dificuldades em obter água potável.
Além disso, a seca também prejudica a produção de energia hidrelétrica do país, obriga centenas de famílias a migrar para as cidades e causa impacto devastador nos ecossistemas e na biodiversidade.
No entanto, a crise hídrica não é apenas resultado das mudanças climáticas e se deve também a um grave problema de distribuição e acesso à água. O Chile é o único país do mundo em que a água, na prática, é tratada como um bem privado. Embora a Constituição de 1980 declare ser um bem nacional de uso público, o Código de Águas do ano seguinte permite ao Estado conceder os direitos de uso a agentes privados.
Na nova Constituição, o Chile se declara um Estado ecológico, cujo valor fundamental é a interdependência do ser humano com a natureza
Muitos desses direitos foram concedidos em perpetuidade, tornando seu comércio em um negócio lucrativo para poucas famílias e empresas. Apesar de o Estado cedê-los gratuitamente, seus proprietários podem posteriormente vendê-los e especular sobre seu valor, como qualquer outra mercadoria.
Isso permitiu que, em plena seca e sem qualquer controle das autoridades, os titulares desses direitos continuassem irrigando lavouras extensivas e usando grandes quantidades de água para mineração, enquanto cerca de 2 mil comunidades camponesas dependem do fornecimento de caminhões pipa.
O que propõe a nova Constituição
Logo após o início de suas sessões, o plenário da Convenção Constituinte – composto por 154 membros eleitos de forma democrática e paritária – declarou “estado de emergência climática e ecológica”, assumindo o cuidado com o meio ambiente como uma de seus prioridades.
O resultado é que, após nove meses de debates, audiências públicas e longas jornadas de votação, pelo menos 50 dos 388 artigos que compõem o texto final são relacionados a questões ambientais. A maioria deles foi promovida pelos "eco-constituintes", um grupo de 30 membros da convenção que liderou essa luta.
Essas novas normas têm suas raízes nos avanços feitos em outros países da América Latina, como a Constituição equatoriana de 2008, que foi a primeira no mundo a estender direitos à natureza, ou a Constituição boliviana de 2009, que inclui antigos conceitos indígenas relacionados ao meio ambiente, como o suma qamaña ou bem viver, e estabelecem o direito fundamental a um meio ambiente saudável.
Na nova Constituição, o Chile se declara um Estado ecológico, cujo valor fundamental é a interdependência do ser humano com a natureza e o bem viver. Isso confere ao Estado e à sociedade a obrigação de proteger e respeitar os direitos da natureza e de agir diante da crise climática e ecológica.
Também consagra como direitos humanos o direito à água, alimentação, meio ambiente saudável, ar puro e direito à cidade e ao território. E cria instrumentos inovadores de justiça ambiental e democracia, como a Defensoria da Natureza e os Conselhos de Bacias Hidrográficas. Também visa garantir o direito a consulta e anuência prévia dos povos indígenas sobre atividades que possam afetar seu território e modos de vida, assim como se propõe a instalar Tribunais Ambientais em cada uma das 16 regiões do país.
O preço de descartar o conteúdo do novo texto de uma só vez e de manter a Constituição de 1980 é alto demais
Outro dos aspectos mais inovadores é a definição de "bens públicos naturais", que inclui o mar territorial e o fundo do mar, praias, águas, geleiras, zonas húmidas e altas montanhas, entre outros, sobre os quais o Estado deve assumir o dever de preservar, conservar e, se necessário, restaurar.
Com relação à gestão da água, a nova Constituição inclui um estatuto que prioriza o exercício do direito humano à água e o equilíbrio dos ecossistemas sobre qualquer outro uso deste recurso. Para este fim, cria a Agência Nacional da Água, um órgão autônomo encarregado de supervisionar as ações de entidades públicas e privadas que será responsável pela concessão e revogação das autorizações de uso da água. Essas autorizações seriam temporárias, não gerariam direitos de propriedade nem poderiam ser comercializadas e incluiriam obrigações para a conservação de fontes e bacias hidrográficas.
Um futuro melhor na balança?
Apesar do grande otimismo gerado pela nova Constituição, sua taxa de rejeição é alta. A poucos dias do plebiscito final, a opção por rejeitar o texto tem um apoio muito próximo, ou até maior, do que a opção por aprová-lo. O panorama é desconcertante, uma vez que 78% dos chilenos votou a favor de substituir a atual Constituição de Pinochet.
Sem dúvida, é mais fácil concordar com a necessidade de mudança do que como alcançá-la. É verdade também que muitas questões estão longe de chegar a um consenso na opinião pública. Mas grande parte da força do movimento de rejeição se deve a uma campanha de desinformação que vem disseminando fake news em relação ao conteúdo da nova Constituição.
O preço de descartar o conteúdo do novo texto de uma só vez e de manter a Constituição de 1980 é alto demais. Essa polarização também acarreta o risco de uma nova crise política e social. Se a população rejeitar o novo texto no próximo domingo, o Chile perderia uma oportunidade histórica de se equipar com as ferramentas necessárias para agir diante da emergência climática e ecológica. A crise não vai esperar, como mostra a seca que assola quase todo o território nacional e que pode se agravar nos próximos anos.
A aprovação da nova Constituição é apenas o primeiro passo. A concretização de seus mandatos ambientais dependeria de um grande número de reformas, a serem processadas no Legislativo e implementadas pelos governos nas próximas décadas. Mas é um passo decisivo que deve ser dado agora e que tem o potencial de promover uma mudança no modelo de desenvolvimento econômico – na região e no mundo.
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