Jineth Bedoya em Londres em 2016, após ganhar o prêmio de jornalismo Anna Politkovskaya por investigar e representar mulheres vítimas de violência sexual no conflito armado na Colômbia
|
Alamy.
Share this
URL copied to clipboard
“Os criminosos sempre quiseram me silenciar e o Estado hoje pretende fazer o mesmo. A desistência do julgamento perante a @CorteIDH mostra que não tem intenção de fazer justiça no meu caso e nos casos de violência sexual,” declarou a jornalista colombiana Jineth Bedoya em sua conta no Twitter na segunda-feira(15), quando a Colômbia se retirou da audiência de seu caso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), acusando os juízes de parcialidade.
Depois de 21 anos esperando justiça por seu sequestro, tortura e estupro em 2000, quando conduzia uma investigação na prisão La Modelo, em Bogotá, Bedoya sofreu forte decepção em um dia que deveria ter sido histórico na Colômbia – o seu é o primeiro caso de violência sexual no país a chegar a um tribunal internacional.
Imagem do arquivo do caso | Jineth Bedoya/Twitter
Na última segunda-feira, Camilo Gómez, diretor da Agência Nacional de Defesa Legal do Estado (ANDJE) deixou uma audiência na Corte Interamericana, que buscava determinar a responsabilidade do Estado colombiano no caso de Bedoya – uma ação sem precedentes. A Nicarágua não o fez com Daniel Ortega, nem a Venezuela com Hugo Chávez ou Nicolás Maduro, nem o Peru na era Alberto Fujimori, o que levanta diversas questões sobre o porquê da posição do Estado colombiano neste caso.
Logo de retirar-se da audiência, Gómez anunciou que a ANDJE solicitaria o afastamento de todos os magistrados do processo, exceto um, e exigiria a paralisação do processo até que seu pedido fosse resolvido. Gómez alegou “falta de garantia de objetividade no processo” e acrescentou que é obrigação dos juízes “ser objetivos e imparciais”.
Ao longo da história da guerra civil na Colômbia, os corpos de mulheres e meninas têm sido tratados como territórios de guerra
Gómez acusou os juízes Elizabeth Odio Benito, presidente da corte, Patricio Pazmiño Freire, E. Raúl Zaffaroni e Ricardo Pérez Manrique de fazer perguntas e comentários que mostraram parcialidade em favor de Bedoya. Acrescentou que, ao se retirar da audiência, não buscou ser "indelicado" com a vítima, mas evitar que uma injustiça fosse cometida contra o Estado, que compareceu perante a corte esperando imparcialidade dos juízes. "Isso não aconteceu neste caso, e não é a primeira vez", disse Gómez.
A audiência virtual em 15 de março | Jineth Bedoya/Twitter
Diante dessas declarações e da decisão inédita de um Estado de abandonar a audiência, a Corte declarou inadmissível o pedido formulado pelo Estado. Também declarou inadmissível seu pedido de paralisar a audiência e seu pedido de excluir do expediente internacional as perguntas dos juízes. Também negou o pedido do Estado colombiano de encaminhar o pedido à Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), acrescentando que cabe à Corte e seus membros continuar com a audiência no Caso Bedoya Lima et al. v. Colômbia.
O caso
Em 25 de maio de 2000, Jineth Bedoya, uma jornalista de então 26 anos que investigava o paramilitarismo na Colômbia, especificamente casos de tráfico de armas, desaparecimentos e homicídios envolvendo o grupo paramilitar conhecido como Autodefesas Unidas da Colômbia (AUC), foi chamada por um paramilitar na prisão La Modelo de Bogotá para conceder uma entrevista. Entretanto, antes de entrar na prisão, Bedoya foi interceptada por três homens que a colocaram em um carro, drogaram, torturaram e estupraram durante 16 horas.
Depois a abandonaram em uma estrada que levava para fora da cidade. Segundo Bedoya, os homens que a sequestram se identificaram como paramilitares e lhe disseram que queriam enviar uma mensagem para todos os jornalistas na Colômbia.
Desde seu ataque, Bedoya criou o "No es hora de callar", um projeto jornalístico que ela dirige para o jornal colombiano El Tiempo, através do qual procura defender as mulheres que são atacadas e assassinadas na Colômbia.
Em um vídeo que compartilhou em sua conta no Twitter antes de comparecer à audiência, Bedoya disse que testemunhar perante um tribunal criminal tão alto significa "não apenas uma vindicação para mim, como jornalista e como mulher, mas também uma janela de esperança para milhares de mulheres e meninas que, como eu, tiveram que enfrentar violência sexual em meio ao conflito armado colombiano".
Ao longo da história da guerra civil na Colômbia, os corpos de mulheres e meninas têm sido tratados como territórios de guerra. Nos arquivos do Centro Nacional de Memória Histórica (CNMH), há centenas de testemunhos de mulheres estupradas e torturadas apenas pela presunção de serem namoradas ou funcionárias do lado oposto daqueles que atacavam suas cidades. Da mesma forma, o CNMH afirma que, entre 1985 e 2016, a Colômbia registrou 15.076 casos de violência sexual no contexto do conflito, nos quais 91% das vítimas eram mulheres. A Colômbia também registou 630 feminicídios em 2020 e 106 até agora em 2021, segundo o Observatório de Feminicídios da Colômbia.
O caso de Bedoya ficou engavetado por anos. Recentemente, com o apoio da Fundação Liberdade de Imprensa (FLIP) e do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL), o Estado colombiano foi chamado a prestar contas por não ter garantido e protegido seus direitos.
O fato de o caso estar sendo julgado em nível regional abre o caminho para a justiça para tantas mulheres que foram sistematicamente silenciadas e invisibilizadas na América Latina
Jonathan Bock, diretor da FLIP, disse ao The Guardian que o caso é "extremamente importante porque estabelece um precedente para todos os jornalistas que são vítimas de violência sexual no contexto de conflitos armados na região".
Incoerências do Estado
Diante do claro posicionamento da CIDH, resta saber como reagirá o Estado colombiano, que tem sido inconsistente em suas ações.
No mesmo dia em que se retirou da audiência de Bedoya, o caso mais emblemático de violência contra as mulheres na Colômbia nos últimos 20 anos, Gómez enviou uma carta à Jurisdição Especial para a Paz (JEP), órgão de justiça transicional criado no âmbito do acordo de paz assinado em 2016, pedindo-lhe para abrir um processo amplo de violência sexual durante o conflito.
Além disso, os motivos de suspeição apresentados pela Colômbia, baseados em argumentos de que os magistrados eram "empáticos com a vítima", são incoerentes, uma vez que os fatos no de Bedoya já foram provados pelo justiça. Em 2019, os ex-paramilitares Alejandro Cárdenas Orozco e Jesús Emiro Pereira Rivera foram condenados por uma corte de Bogotá.
'No es hora de callar' | Jineth Bedoya/Twitter
Este caso será sem dúvida fundamental para a história da Colômbia e da região, pois lançará as bases para o tratamento e punição de casos de violência sexual em contexto de conflitos armados e de violência de gênero no continente.
Embora tenham passado 21 anos, o fato de o caso estar sendo julgado em nível regional abre o caminho para a justiça para tantas mulheres que foram sistematicamente silenciadas e invisibilizadas na América Latina.
Assine nossa newsletterAcesse análises de qualidade sobre democracia, direitos humanos e inovação política na América Latina através do nosso boletim semanalInscreva-me na newsletter
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy