
Dona Marta: 6 anos abrigando migrantes venezuelanos
Hoje, caminhantes da rota Cúcuta-Bucaramanga contam com apoio institucional. Mas colombianos prestam ajuda desde sempre



Esculpido em uma pedra, a pequena casa na entrada da cidade de Pamplona, na Colômbia, dispõe de um modesto fogão a lenha. Nele, Marta Duque cozinha algumas batatas, arroz branco e um pouco de frango, com os quais espera fazer sopa suficiente para oferecer às dezenas de caminhantes venezuelanos que batem à sua porta todos os dias.
Os dotes culinários de dona Marta, como é conhecida, já são famosos ao longo da estrada que liga Cúcuta a Bucaramanga, rota percorrida por cerca de 2 milhões de caminhantes venezuelanos nos últimos anos. As massas de refugiados da crise sócio-econômica do país vizinho cruzam a fronteira através da Ponte Internacional Simón Bolívar, quando têm os documentos necessários ou dinheiro suficiente para pagar as taxas, ou pelas trilhas ilegais (trochas) quando não os têm.
Uma vez na cidade fronteiriça de Cúcuta, os refugiados convergem em um grande mercado local, muito ativo desde a eclosão da crise migratória. A partir dali, os venezuelanos decidem se ficam na cidade, se compram mercadorias e retornam à Venezuela na esperança de obter lucro, ou se encaram as frias montanhas colombianas para buscar oportunidade nas grandes cidades do país.
Depois que os venezuelanos começaram a fazer a travessia em massa em 2015, as grandes organizações e agências intergovernamentais como a Organização Internacional para as Migrações (OIM) ou o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) iniciaram as burocráticas negociações com o governo colombiano para estabelecer centros de apoio ao longo da rota, que em seu auge recebia mais de 5 mil migrantes por dia.
ONGs também se mobilizaram para ajudar os caminhantes, mas o processo foi lento em comparação com o desespero dos venezuelanos em sair do país. Hoje, mais de 6 milhões de refugiados já deixaram a Venezuela, segundo o ACNUR.

Entre 50 e 100 venezuelanos passam pela casa de Marta Duque diariamente
Andrés Bernal Sánchez
Quando a infraestrutura de apoio finalmente se estabeleceu, já fazia anos que dona Marta oferecia aos caminhantes um prato de comida e um lugar para dormir em sua casa, situada na entrada da ponte de Pamplona, a uns 75 km da fronteira.
Caminhantes mais jovens e mais atléticos conseguiriam completar o percurso em 15-18 horas. Mas a realidade envolve pessoas carregadas de sacolas, crianças e malas. Muitas já vêm caminhando desde o coração da Venezuela, ou mesmo do litoral. Assim, a maioria dos caminhantes demora mais de 20 horas para percorrer esse trecho, o que os obriga a passar pelo menos uma noite à beira de uma pista cheia de caminhões e veículos de todos os tipos.

Cozinha da casa de Marta Duque. Nesta cozinha Dona Marta prepara comida para entre 50 e 70 pessoas todos os dias
Francesc Badía i Dalmases
Como vive perto da entrada da cidade, dona Marta acompanhava de perto os venezuelanos que chegavam exaustos e famintos depois de percorrerem dezenas de quilômetros de estrada perigosa, fria e íngreme. Assim, o que a princípio era um ato de generosidade e empatia, se tornou o objetivo central do seu dia a dia. Inicialmente, dona Marta investia seus modestos recursos para fornecer alimentos para os migrantes. Com a chegada gradual de doações de mantimentos provenientes de ONGs internacionais, ela conseguiu estabelecer a Fundação Marta Duque.
De manhã, dona Marta oferece um sanduíche e água a quem passa, mas à tarde e à noite, com a ajuda de voluntários venezuelanos, consegue fornecer um prato quente para até as 100 pessoas que passam nos dias mais movimentados.
“Fazendo um Tetris” com os colchonetes no chão, ela também consegue acomodar um bom número de mulheres e crianças à noite, explica. Em momentos de maior necessidade, ela e seus voluntários também disponibilizam a garagem do outro lado da rua, onde conseguem acomodar até 25 pessoas no espaço estreito.

Mural em homenagem a Marta Duque e ao seu trabalho com os migrantes em Pamplona, na Colômbia
Francesc Badia i Dalmases
A ajuda solidária de dona Marta é informal e não conta com o apoio de todos em Pamplona, uma cidade católica conservadora. Muitos moradores, que se opõem à prática por acreditarem que atrai mais migrantes, cobram que as atividades de dona Marta sejam regulamentadas.
Com mais de 25 anos de experiência trabalhando para a comunidade, dona Marta conseguiu formalizar sua atividade através da sua fundação e canalizar ajuda internacional. Marta queixa-se da falta de coordenação que existe entre os múltiplos atores envolvidos na ação humanitária ao longo desta movimentada via.
Os migrantes que atravessam legalmente recebem orientação das autoridades colombianas na fronteira. No caminho, eles recebem apoio através de órgãos governamentais como o Centro de Atenção Sanitária Los Patios, que abriga mais de 25 entidades internacionais como agências da ONU e a Cruz Vermelha, ou através do abrigo Don Juana, administrado pela organização cristã norte-americana Samaritan's Purse.

Um grupo de migrantes se registra no abrigo improvisado de dona Marta para passar a noite
Andrés Bernal Sánchez
As autoridades municipais exigem a regularização e o cumprimento das normas existentes, o que Dona Marta considera uma burocracia absurda diante da urgência da crise migratória. Se ela cumprisse estritamente todos os protocolos sanitários, de segurança, espaço, acessibilidade e registro, assim como as normas internacionais, dona Marta teria que reduzir para menos de um décimo o número de caminhantes que acolhe.
Ela vê o que ela faz como uma tentativa de aliviar uma emergência humanitária diária com os meios disponíveis. "A necessidade e a fome não pedem certificado", argumenta.

Dona Marta continuou sua operações mesmo depois de perder três irmãos para a Covid 19
Andrés Bernal Sánchez
Quando a pandemia eclodiu em março de 2020, a maioria dos centros internacionais de apoio aos caminhantes fechou as portas, mas o fluxo de refugiados não parou. Pelo contrário, o trânsito de venezuelanos aumentou na Colômbia com os chamados "retornados", migrantes rejeitados em outros países da América do Sul que fecharam as fronteiras durante os estritos lockdowns da pandemia.
Dona Marta, apesar de ter perdido três irmãos para a Covid-19, manteve sua casa aberta, transformando-a na única luz de esperança e alívio em uma rota de exílio que se tornou mais escura do que nunca.
A complexa crise humanitária que a Venezuela vive mobilizou poderosas organizações internacionais, às vezes impossibilitando que cidadãos comuns, como dona Marta, contribuam como sempre fizeram. "Se há tantas organizações e tantos doadores, onde está a coordenação?", se queixa.
Quando as grandes agências internacionais e ONGs abandonarem o local, dona Marta continuará de pé frente a seu fogão a lenha, pronta para fornecer um prato de sopa aos caminhantes exaustos antes de aventurar-se montanha adentro. Uma maior articulação oficial com esse tipo de iniciativa da sociedade civil faria, segundo ela, muito sentido.
Este artigo faz parte da série "Caminhantes na fronteira da migração", que conta com apoio da Fundação Ford. Leia a parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4.
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