
A migração venezuelana contada em primeira pessoa
Em 2018, um grupo de voluntários passou a oferecer um caderno aos refugiados que chegam à Colômbia para que escrevam sua história



Compro cabelo! Compro cabelo! Ao cruzarem a fronteira da Colômbia, os migrantes venezuelanos recém chegados são recepcionados pelos sons do anárquico mercado informal. Quando podem pagar as taxas e apresentar as devidas documentações, os venezuelanos chegam pela Ponte Internacional Simón Bolívar. Quando não, atravessam por uma das várias rotas ilegais (trochas), terra de ninguém onde proliferam traficantes, coiotes e exploradores de todos os tipos.
Compro cabelo! Uma jovem venezuelana, trêmula, se aproxima do intermediário e negocia a venda de seus fios por 50 mil pesos colombianos (cerca de US$ 13). Ela acaba de atravessar, acompanhada de sua mãe doente, na esperança de encontrar tratamento deste lado da fronteira, deixando seu belo cabelo e toda a sua vida para trás.
Esta poderia ser uma das 1,7 mil histórias sobre a diáspora venezuelana que a ONG TodoSomos vem coletando ao longo dos 200 km de rodovia que separa Cúcuta de Bucaramanga, uma estrada perigosa que sobe as montanhas verdes e frias do departamento colombiano de Santander Norte. A jovem migrante e sua mãe doente certamente se hospedarão em um dos abrigos ao longo da rota, estabelecidos para fornecer assistência humanitária desde o início da crise. E talvez um dos voluntários de TodoSomos convidará a jovem a escrever sua história em um dos livros que coletam testemunhos de alguns dos 6 mil migrantes que passam a cada semana.
Essa coleção de testemunhos é uma iniciativa de Douglas Lyon, médico epidemiologista originário de Oregon, nos Estados Unidos, e colaborador de longa data do Médicos Sem Fronteiras (MSF) na África, Ásia e agora na América Latina. “Os testemunhos das vítimas têm o valor de documentar uma tragédia que se reproduz dia a dia diante de nossos olhos. Para os refugiados, contar sua própria história, escrevê-la em um livro, também tem um valor terapêutico", diz Lyon.
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Além do valor documental, histórico e etnográfico da crise migratória venezuelana, Lyon aponta a importância para a vítima de se sentir ouvida e valorizada, não apenas pela história oral, mas pelo valor ritualístico da escrita que, ao se fixar no papel, transcende a volatilidade das palavras ditas. Além disso, "a crise venezuelana oferece uma oportunidade que não existe no Sudão, na República do Congo ou em Mianmar. A grande maioria dos refugiados venezuelanos sabe ler e escrever, uma vez que foram educados em um país até recentemente rico e onde a educação pública universal era uma realidade”, diz Lyon.

Douglas Lyon lendo um dos livros de testemunhos
Embora muitos provavelmente não escrevem à mão há anos, o fato de que a maioria dos caminhantes consegue colocar sua experiência no papel oferece uma rara oportunidade de capturar a realidade e a profundidade do drama venezuelano. "É importante que o mundo saiba", diz Lyon, mostrando os sete volumes de testemunhos que já acumulou desde o início do projeto, em 2018.
Lyon tem uma ética rigorosa sobre como as informações são coletadas e processadas. "Nossa metodologia garante que aqueles que escolham escrever em nossos livros confiem em nosso respeito pelo anonimato, se assim o desejarem, no valor do testemunho e no objetivo principal de nosso trabalho de defesa e criação de um arquivo permanente", argumenta.

De sua sede, instalada em uma casa alugada na cidade de Chinácota, a cerca de 40 km da fronteira, o médico coordena a coleta de depoimentos semanalmente. Lyon organiza os diferentes voluntários, que envia todas as manhãs para alguns dos abrigos de assistência humanitária para migrantes que existem no caminho para Bucaramanga.
Em outubro de 2021, mais de 5,9 milhões de refugiados e migrantes haviam deixado a Venezuela. Destes, mais de 80% estão na América Latina e no Caribe. Quando as elites econômicas deixaram o país na esteira da revolução chavista dos anos 2000, puderam se dar ao luxo de voar para Miami, Nova York ou Madrid. Mas o agravamento da situação dentro da Venezuela – especialmente desde 2018, com o surto de violência nas ruas, o fechamento de espaços cívicos, duras repressões, hiperinflação e escassez de suprimentos básicos – empurrou milhões de venezuelanos comuns para rotas mais precárias.
"O êxodo venezuelano é o maior que a América Latina já viu nos tempos modernos", disse Filippo Grandi, chefe da Agência das Nações Unidas para as Migrações (ACNUR), em Bogotá. A venezuelana é a maior crise de refugiados do mundo depois da síria. Dos mais de 5 milhões venezuelanos que hoje estão espalhados pela América Latina, 1,7 estão na Colômbia. Grande parte desses migrantes atravessa, muitas vezes a pé, pela Cordilheira Oriental dos Andes colombianos, cujas passagens atingem alturas superiores a 3,5 mil metros acima do nível do mar.
Para Lyon, o trabalho da TodoSomos é inédito. Até hoje ninguém conseguiu reunir tantas experiências pessoais e familiares escritas à mão sobre uma diáspora tão longa. Ele acredita que o projeto cumpre uma dupla função: proporcionar aos migrantes um espaço de empatia em meio às dificuldades da viagem e documentar um desastre humanitário em curso.
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Sabendo que tem uma grande missão nas mãos, Lyon criou uma pequena comunidade de voluntários da Venezuela, Colômbia e além. Quando os grupos acumulam cerca de 300 depoimentos, eles leem as histórias em voz alta em pequenos grupos. Nessas oficinas, os voluntários identificam as principais ideias e passagens de cada depoimento, registram os comentários um dos outros e inserem essas informações em um base de dados.
A amostragem que realizam é semi-aleatória. Os voluntários procuram caminhantes dispostos a escrever sua história durante seus intervalos de descanso nos abrigos. Eles pedem aos migrantes que contem "a história que contariam a seu amigo, sua mãe, seu pai, seu irmão ou sua irmã".
É impossível prever se a garota que vendeu seu cabelo na fronteira escreverá um dia sobre sua experiência traumática, mas sabemos que os livros de Lyon contêm histórias inestimáveis para documentar a escala dessa tragédia.
Este artigo faz parte da série "Caminhantes na fronteira da migração", que conta com o apoio da Fundação Ford e foi publicada anteriormente em espanhol pelo El País (Planeta Futuro). Leia a parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4.
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