
Christopher: a diáspora venezuelana sentida na pele
A crise migratória traz histórias de desespero, mas também de tenacidade e o objetivo de construir um futuro longe do país

Ao anoitecer na rota colombiana que liga Cúcuta a Bucaramanga, um fluxo constante de caminhantes da fronteira com a Venezuela chega ao refúgio de La Don Juana. Chegam exaustos. A maioria levava dias caminhando por uma estrada perigosa sem acostamento, levando as crianças pelas mãos e seus poucos pertences nas costas.
As feridas da crise migratória venezuelana, embora não tão intensa como em outros momentos, continuam a sangrar para dentro da vizinha Colômbia, sem que ninguém consiga estancá-las. Já são 6 milhões de migrantes e refugiados que deixaram o país como consequência da instabilidade política, social e econômica que aflige o país desde 2014. As ondas mais recentes de migrantes fogem também da fome. Em 2020, o Programa Mundial de Alimentos apontou que um em cada três venezuelanos não tem acesso a alimentos suficientes para atender às exigências nutricionais básicas.
Ao final de uma longa e perigosa jornada, La Don Juana surge como vislumbre de esperança. Mantido pela ONG Samaritans' Purse, dos EUA, o abrigo se enche de famílias com crianças, jovens casais e caminhantes solitários, que receberão assistência e uma refeição quente. Sem forças para se registrar no abrigo, alguns caminhantes sentam-se na recepção enquanto se recuperam. Entre eles destaca-se um jovem tatuado, que viaja acompanhado de uma cachorrinha, uma mochila e chinelos cor-de-rosa.
O caminhante diz que seu nome é Enrique Lugo, mas que todos o chamam de Christopher. Ele e a cadela estão juntos há menos de sete horas, quando Christopher a encontrou abandonada pelo caminho. “A batizei de Troya, porque ela é como um cavalo de Tróia. Vamos caminhando despretensiosamente, mas estamos prontos para tudo. Não há amizade mais forte que a de um cachorrinho", diz Christopher.

Enrique Lugo "Christopher" encontrou Troya no caminho
Andrés Bernal Sánchez
A de Christopher é uma história de luta e desespero, como a de tantos migrantes que vivem ao redor do mundo. Mas é também uma história de determinação e ousadia. Ele deixou o estado fronteiriço de Táchira, na Venezuela, rumo ao Chile, onde tem um conhecido que se ofereceu para recebê-lo. Ele já havia percorrido quase 600 km da rodovia rumo a Bogotá quando recebeu a notícia de que uma máquina de tatuagem a um preço acessível estava disponível em sua cidade natal, San Cristóbal. Decidiu voltar para comprá-la.
Com um nó na garganta e brilho nos olhos, Christopher descreve o momento em que se reencontrou com a mãe – e a dor de ter que se separar dela mais uma vez. Mas agora, com sua máquina de tatuar, se sente mais bem equipado para enfrentar a longa viagem de quase 6 mil km até a fronteira chilena, que pretende percorrer "passo a passo".
Além de Troya, Christopher viaja por este trecho da estrada acompanhado por Kember, um venezuelano de trinta e poucos anos que conheceu na primeira ida. A história de Kember também reflete a epopeia de determinação e coragem diante das adversidades de tantos refugiados que lutam por um destino melhor. Depois de dois anos trabalhando na Colômbia, Kember economizou o equivalente a mais ou menos US$ 500, o suficiente para que pudesse voltar para sua família e montar uma pequena empresa em seu país natal.

Kember, Christopher e Troya
Andrés Bernal Sánchez
Mas após reentrar na Venezuela por uma das rotas informais (trochas) estabelecidas para driblar a Ponte Internacional Simón Bolívar, a passagem oficial da fronteira, Kember foi abordado por policiais venezuelanos. Apesar das negociações desesperadas, ele chegou em casa com apenas US$ 80 no bolso. É difícil imaginar uma tragédia deste calibre, mas a resiliência que ele demonstra ao retornar agora à Colômbia em busca de uma segunda chance caracteriza os refugiados venezuelanos.
Depois de recuperarem as forças no barracão montado no abrigo pela Samaritan's Purse (apenas mulheres com crianças podem acessar as instalações), Christopher, Kember e Troya voltam à estrada em direção ao Páramo de Berlín, o grande obstáculo geográfico na Cordilheira dos Andes que os separa da primeira "grande" cidade colombiana, Bucaramanga.

Christhoper, Kember e Troya caminham à beira de uma estrada colombiana
Andrés Bernal Sánchez
O governo colombiano não autoriza o embarque de migrantes nos ônibus na rota Cúcuta-Bucaramanga, exigindo comprovante de nacionalidade ou residência. Embora existam formas de contornar a regra, como a compra de passagens com o número de identidade dado por um cidadão solidário, as inspeções policiais são frequentes e as multas para os motoristas são altas. Motoristas que usam seus próprios veículos para levar migrantes até a próxima etapa da jornada também podem ser multados.
Estes obstáculos forçam os migrantes a embarcarem em uma caminhada a mais de 4 mil metros acima do nível do mar, enfrentando temperaturas que caem abaixo de zero, muitas vezes vestindo nada além de chinelo, camiseta e shorts. Em alguns casos, os migrantes não têm roupas de frio, mas em muitos outros eles simplesmente são incapazes de carregar o peso extra que essa peçam acarretam, sendo forçados a ignorar os sinais de alerta de hipotermia afixados por ONGs ao longo do caminho.
Desde 2015, um quinto da população da Venezuela já deixou o país, com uma média de 2 mil pessoas atravessando a Colômbia diariamente em 2021, de acordo com as Nações Unidas.
Talvez Christopher realize seu sonho de financiar a viagem ao Chile tatuando clientes esporádicos ao longo do caminho. Talvez Kember consiga economizar alguns pesos colombianos novamente e voltar à Venezuela para alimentar seus filhos sem ser roubado pelas forças de segurança de seu país. Enquanto isso, a “complexa crise humanitária”, como os órgãos oficiais definem a situação dos venezuelanos, certamente seguirá seu curso inexorável.
Este artigo faz parte da série "Caminhantes na fronteira da migração", que conta com apoio da Fundação Ford. Leia a parte 1, parte 2, parte 3 e parte 4.
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