
A invasão da Ucrânia bagunça tabuleiro geopolítico na América Latina
Apesar da distância geográfica, o conflito europeu expôs as rachaduras entre os interesses políticos de cada país


Por seu caráter violento e inédito na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, a agressão russa à Ucrânia vai reconfigurar os espaços geopolíticos e ideológicos que definem o mundo desde o fim da Guerra Fria. A batalha em Kiev não é mais entre capitalismo e comunismo, mas entre a democracia liberal europeia e a tirania russo-soviética.
Mas às vezes a história se move mais rápido do que as mentes, e as tradições ideológicas herdadas são difíceis de atualizar quando a realidade muda de repente. As feridas dos ultrajes e da violência do imperialismo norte-americano na América Latina no século 20, para não mencionar as do colonialismo europeu anterior e contemporâneo, continuam abertas.
Assim, condicionados por esses fatores, os governos latino-americanos vêm se posicionando em relação à guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
O distanciamento dos EUA da região deixou um vazio que outros atores vêm preenchendo, desde o crime organizado até os interesses chineses e russos
É fundamental entender de onde vêm esses pronunciamentos e, sobretudo, como e por que ocorreu a reaproximação entre alguns governos do Sul Global e o governo Putin.
Em fevereiro deste ano, pouco antes da escalada do conflito, o vice-primeiro-ministro russo, Yuri Borisov, visitou vários países latino-americanos. Borisov se encontrou com o presidente venezuelano, Nicolás Maduro, e com os líderes da Nicarágua e Cuba, três regimes há muito apoiados pela Rússia. Da mesma forma, o presidente russo,Vladimir Putin, se reuniu com Jair Bolsonaro, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina, países tradicionalmente distantes da Rússia. Ambos os presidentes buscam oportunidades econômicas e vantagens com um interlocutor disposto a fazer negócios para desestabilizar a ordem.
O distanciamento dos Estados Unidos da América Latina nas últimas duas décadas deixou um vazio que outros atores vêm preenchendo, desde o crime organizado até os interesses chineses e russos.
Após alguma hesitação inicial, e diante de uma perigosa escalada no conflito entre Rússia e Ucrânia, Brasil e Argentina oficialmente condenaram a invasão russa. No entanto, houve também certa ambivalência, uma vez que ambos os países evitaram acusar a Rússia de levar a cabo uma "invasão ilegal" merecedora das mais severas sanções, uma asserção fortemente partilhado pelos EUA e a União Europeia, e que conta com a adesão de países da região governados por líderes tanto de esquerda como de direita, incluindo Colômbia, Equador, Costa Rica, Peru e Chile.
Essas rachaduras mostram que, diante do cenário complexo e mutável da guerra na Ucrânia, há alguma penetração e influência russa na América Latina e o que acontece em solo ucraniano não será indiferente à região e terá consequências políticas irreparáveis.
Duas das capitais historicamente aliadas políticas da Rússia, Caracas e Manágua, cortaram comunicação com Bogotá
Simbolizando a extensão da repercussão da guerra entre os ministérios das Relações Exteriores na América Latina, duas das capitais historicamente aliadas políticas da Rússia, Caracas e Manágua, cortaram comunicação com Bogotá, a capital colombiana. Esse tipo de dilema diplomático e político influencia tensões já graves para o hemisfério sul, como a complexa crise humanitária na Venezuela que já levou mais de 6 milhões de pessoas a deixarem o país nos últimos anos — a maior leva de refugiados do mundo depois da Síria.
Essas posições diversas e opostas podem, se persistirem, atrasar a já enfraquecida integração regional na América Latina, fundamental para o avance de sua agenda de inserção internacional e para a superação coletiva da crise econômica e social agravada pela pandemia de Covid-19. Apesar de seus esforços, Putin não conseguiu dividir os 27 países da União Européia com esta guerra, mas divide a comunidade latino-americana.
Com os números de infecções por Covid-19 em queda na região, esperava-se que a articulação entre blocos sub-regionais, como a Aliança do Pacífico e o Mercosul, melhorasse o diálogo entre os países, o que não aconteceu com vacinas, diferentemente da Europa, que mutualizou a compra e distribuição dos imunizantes. A Covid-19 paralisou os cenários de diálogo multilateral, que agora serão mais difíceis de consolidar se as rachaduras ideológicas causadas pela invasão da Ucrânia se aprofundarem.
A América Latina responde
Após a invasão, a Rússia encontrou aliados incondicionais em alguns países latino-americanos. Cuba, Venezuela e Nicarágua declararam seu apoio ao Kremlin e legitimaram a operação militar de Putin contra a Ucrânia. Mesmo assim, não ousaram votar contra a resolução da Assembleia Geral da ONU que condenou a agressão russa. Em vez disso, Cuba e Nicarágua se abstiveram de votar, assim como a Bolívia. O voto da Venezuela não foi computado por falta de pagamento de sua adesão à ONU.
Em mensagem televisionada antes da invasão, Maduro perguntou: “O que o mundo quer? Que o presidente Putin fique sentado de braços cruzados e não haja em defesa de seu povo?". Em ligação telefônica com Putin transcrita pelo Kremlin, Maduro “manifestou forte apoio às ações decisivas da Rússia, condenou a atividade desestabilizadora dos Estados Unidos e da OTAN e enfatizou a importância de combater a campanha de mentiras e desinformação lançada por países ocidentais”. Após a invasão da Ucrânia, Maduro reafirmou sua posição.
Há apenas um mês, Fernández ofereceu a Putin seu país como 'porta de entrada para a América Latina'
A posição de Maduro é compartilhada pelo Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV), que afirma que a Rússia tem o direito de se defender diante da constante ameaça de potências imperialistas, uma narrativa que repercute na Venezuela. Com seu posicionamento, o governo bolivariano, que sobrevive em parte graças a importantes créditos russos, demonstra sua total dependência política da Rússia. De fato, o chanceler Félix Plasencia escreveu em sua conta no Twitter que "a paz na Rússia é a paz no mundo".
Durante a escalada retórica que precedeu a guerra, a Rússia chegou a ameaçar implantar mísseis na Venezuela, já um cliente tradicional de suas armas.
Seguindo os passos de Maduro, o governo nicaraguense de Daniel Ortega também mostrou apoio incondicional a Putin. O presidente aplaudiu a decisão do Kremlin de reconhecer a independência de Donbass e Lugansk e criticou as sanções impostas pelos Estados Unidos e pela União Européia em resposta à invasão. A fraternidade entre os dois países é extensa. No mesmo dia em que a Rússia iniciou a guerra, o presidente da Duma (parlamento russo), Vyacheslav Volodin, visitou Manágua em meio a grandes demonstrações de afeto.
Outros países da região, no entanto, têm se manifestado abertamente em sua oposição à invasão russa da Ucrânia, como México, Colômbia, Chile, Costa Rica, Peru e Equador. Embora não tenham rompido relações com a Rússia, rejeitam abertamente a invasão.
Por sua vez, Bolsonaro mantém uma posição ambígua. De acordo com o presidente brasileiro, os interesses brasileiros envolvem garantir o fornecimento de fertilizantes russos para a agricultura, uma questão "sagrada", segundo ele. No entanto, Bolsonaro parece interessado em garantir apoio de Putin para a sua campanha eleitoral, como sua recente visita ao Kremlin sugere.
Embora por motivos diferentes, a Argentina também se aproximou de Moscou. Em visita a Moscou em 3 de fevereiro, Fernández agradeceu a Putin pelas remessas da vacina "Sputnik" e ofereceu seu país como "porta de entrada para a América Latina". Fernández suavizou seu discurso após a invasão, mas o abandonou completamente. Fernández condenou a invasão e votou contra a invasão na Assembleia Geral da ONU, mas não disse que romperá com Putin. Para setores da velha esquerda argentina, pátria de Che Guevara, qualquer oportunidade de culpar o "imperialismo ianque" deve ser aproveitada.
As posições conflitantes de alguns líderes latinos mostram que as divisões entre democracias liberais e autocracias são profundas na região. Essa guerra na Europa, apesar de acontecer a milhares de quilômetros da América Latina, pode acabar com as esperanças de uma real integração regional e de uma estratégia de saída coordenada da pandemia. O que não aconteceu durante a longa crise da Covid-19, hoje desapareceu entre a fumaça das bombas que enevoam Kiev.
Leia mais!
Receba o nosso e-mail semanal
Comentários
Aceitamos comentários, por favor consulte ás orientações para comentários de openDemocracy