democraciaAbierta: Opinion

O terror literal

A futura proteção da democracia contra o terror literal dependerá de sua punição correta e no tempo das garantias jurídicas

Jean Wyllys
17 Janeiro 2023, 4.51

Ovos da serpente ou a repetiçao da história

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Jean Wyllys, 2023

Quando, em 2015, escrevi o breve prefácio para “Como conversar com um fascista”, best-seller da filósofa Marcia Tiburi, esta e eu fomos acusados de “exagerados” e “pouco criteriosos” por políticos, jornalistas e intelectuais.

Como se tratava de uma constatação e um alerta feitos por uma mulher e um gay, nossa leitura da conjuntura foi a princípio desautorizada e ironizada pelo machismo e a homofobia nem sempre inconscientes daqueles que, depois da desgraça consumada (da ascensão política do fascismo no Brasil a partir de 2016) e sem qualquer autocrítica e/ou pedido de desculpas a nós dois, passaram a se referir ao bolsonarismo como um movimento fascista - que é o que ele de fato sempre foi.

Para sorte do país, esses mesmos políticos, jornalistas e intelectuais - amiúde homens heterossexuais e brancos, muitos de direita - não se perderam em seu negacionismo arrogante quando se tratou de nomear os ataques dos bolsonaristas aos palácios dos três poderes da República, em Brasília, no último dia 08 de Janeiro: terrorismo. Sim, terrorismo perpetrado por fascistas de extrema-direita, este pleonasmo.

Ainda que, devido à desinformação praticada pela maior parte da imprensa ocidental, a palavra “terrorismo” leve o imaginário islamofóbico aos atos de violência perpetrados por fundamentalistas islâmicos, a verdade é que a Ciência e Filosofia Políticas definem como terrorismo toda forma violenta de luta política, por meio da qual se busca a destruição da ordem establecida e/ou a criação de um clima de terror e insegurança passível de intimidar aos adversários e à população em geral.

Nesse sentido, o que a extrema-direita vem praticando em diferentes partes do mundo, mas especialmente nos EUA e no Brasil é puro terrorismo, seja nas mídias sociais digitais, seja nas ruas e praças.

Os terroristas brasileiros objetivaram no último dia 08 de janeiro destruir literalmente a política e a memória do país

Com financiamento de setores do empresariado e das máfias disfarçadas de igrejas neopentecostais, e a cumplicidade de oficiais das Forças Armadas e agentes das polícias militares estaduais - abrigos há anos do fanatismo cristão, do fascismo e do neonazismo -, os terroristas brasileiros objetivaram no último dia 08 de janeiro destruir literalmente a política e a memória do país. Saíram do submundo da internet (da “cultura digital”) - onde não há lei e tudo é “imaterial” - para a superfície da realidade concreta, cujas leis lhes pareciam sem qualquer eficácia inibidora.

A extrema-direita é literal. Tomada pelo vazio de pensamento, ela apenas crê e acata ordens. Se ela já havia rompido com a política como mediadora de conflitos nas redes socias, onde pelo menos desde 2016 demandava por um golpe ou por uma “intervenção” militar, ao partir para a destruição física dos prédios dos três poderes, mostrou que só sabe ser literal e só compreende a retórica da guerra. Nesse sentido, a escolha de Brasília - a cidade-polis por excelência- como palco dessa guerra amplamente anunciada no Facebook e em grupos de WhatsApp e Telegram não poderia ser mais simbólica, da mesma forma que o Capitólio para os terroristas estadunidenses. Na América como no Brasil, se a retórica é a da guerra, a política já não serve. E há que destruí-la literalmente.

A literalidade dos fascistas também aparece em sua relação com as artes. Depois de vermos a pobreza semântica dos desenhos, pinturas e esculturas presenteadas a Bolsonaro por seus seguidores - e podemos vê-los em seu conjunto quando da saída da família de Bolsonaro dos palácios do Planalto e Alvorada: todos de uma literalidade e realismo propagandístico - não é de se espantar que fossem flagrados destruindo os quadros de artistas como Di Cavalcanti e Cândido Portinari, cujas obras primam pela polissemia e interpelam a inteligência do receptor, na medida em que precisam ser interpretadas porque complexas.

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Os fascistas rejeitam a complexidade. Diante desta, optam por destruí-la porque desestabiliza seu sistema simplório, amiúde binário, de classificar as coisas do mundo: “Meninos vestem azul, meninas vestem rosa”, como exigia uma das mais destacadas fanáticas da seita bolsonarista, Damares Alves, quando ministra da Família e da Mulher.

Como prólogo desse ataque terrorista aos acervos dos palácios da república, o MBL - start up fascistóide paulistana composta de analfabetos políticos que até 2020 integravam a seita bolsonarista - tentou destruir a exposição “Queer museu” pelos mesmos motivos injustificáveis dos que golpearam o quadro de Di Cavalcanti: limitações cognitivas associadas a uma paranóia resultante de ansiedade sexual.

Como os nazistas dos anos 30, eles consideraram a exposição “Queer Museu” uma “arte degenerada” a ser destruída já que eram - e seguem sendo - incapazes de interpreta-la. Já seja destruída pela mentira e pela difamação contra seus autores e curadores, como o fez o MBL em relação ao “Queer Museu”, ou seja destruída literalmente pela força bruta, como nos ataques do dia 08 de janeiro.

Para os membros dessa seita política - em cujos alicerces estão as seitas cristas neopentecostais- que só pode ser engendrada e posteriormente financiada e influenciada graças ao modo de funcionamento das plataformas digitais de mídias sociais, ou seja, ao graças a esse capitalismo de plataforma; para essas pessoas, a Bíblia já é tomada literalmente como a “palavra de Deus” e não como um documento histórico e guia de uma espiritualidade sã.

Para a seita de extrema-direita, suas prescrições e valores morais devem ser aplicados forçosamente a todos e todas nós mesmo que esses valores e prescrições literalmente digam respeito a sociedades semitas de mais três mil anos atrás. Daí inclusive toda sua homofobia e a concentração de suas mentiras em temas de sexualidade e gênero.

Em termos de comparação, não há muita diferença entre as motivações dos terroristas que atacaram as obras de arte em Brasília e as daqueles talibãs que puseram abaixo as esculturas milenares e gigantescas de Buda no Afeganistão. Os apelos do mundo para que os eles preservassem o patrimônio da humanidade não surtiram qualquer efeito. As gigantescas estatuas foram postas abaixo porque membros de uma seita política e/ou religiosa só vêem “inimigos” fora dela.

Uma vez que a mentira, as fake news e as teorias conspiratórias disseminadas nas redes e grupos de WhatsApp e Telegram, ou seja, as formas de desinformação digital tiveram um papel importante nos ataques terroristas de Brasília, é preciso ressaltar aspecto do perfil médio dos peões da seita: a faixa etária média acima dos 50 anos, o profundo ressentimento, a culpa por passados obscuros dos quais se envergonham e o analfabetismo digital funcional.

Como lidar com o terror perpetrado por essa gente que é ao mesmo tempo algoz e vítima? Seguramente a política já não pode mais fazer a mediação. Aí terá que haver o uso legítimo da força e atuação do direito penal.

Ainda que vítimas da desinformação, ninguém é inocente ou incapaz. E de sua punição correta e no tempo das garantias jurídicas dependerá a futura proteção da democracia contra o terror literal.

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