
Ortega teria escondido até 9 mil mortes de Covid-19 na Nicarágua, mostra relatório
O Observatório para a Transparência e Anticorrupção afirma que os números oficiais não condizem com o número real de vítimas da doença

O governo de Daniel Ortega teria escondido entre 6 mil e 9 mil mortes por Covid-19 entre março de 2020 e novembro de 2021, segundo mostra um estudo intitulado "Covid-19 e opacidade: a fórmula da morte na Nicarágua" publicado este mês pelo Observatório para Transparência e Anticorrupção da Nicarágua.
Os autores, que preferem manter o anonimato devido à perigosa situação de segurança na Nicarágua, afirmam que, após comparar os dados divulgados pelo governo com estudos de mortalidade do Comitê Científico Multidisciplinar do Observatório Cidadão da Covid-19 e estatísticas oficiais dos países vizinhos, a conta não fecha, deixando em evidência que houve mortes de Covid- 19 que foram registradas como consequência de outras patologias. O relatório foi divulgado durante uma teleconferência de imprensa em 4 de dezembro.
Ao longo dos quase dois anos de pandemia, o sindicato médico nicaraguense tem estado sob escrutínio por críticas ao regime, com relatos de pelo menos 16 médicos demitidos de hospitais públicos sem qualquer explicação depois de pedirem equipamento de biossegurança e recomendarem medidas de prevenção nacional mais fortes contra a pandemia de Covid-19.
Por sua vez, o Congresso, que é controlado pelo partido governista, cancelou o status legal de 24 ONGs médicas depois de Rosario Murillo, vice-presidente e mulher de Ortega, ter acusada as organizações de manterem médicos falsos.
O Ministério da Saúde da Nicarágua (Minsa) registrou 211 mortes por Covid-19 e 17.550 infecções, em contraste com as 5.945 mortes e 31.222 casos de contágio registrados pelo Observatório do Cidadão que registrou, uma taxa 28 vezes mais alta do que a oficial.
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Os números do governo sugerem que, entre outubro de 2020 e novembro, apenas um cidadão a cada 10 mil teria morrido de Covid-19 semanalmente na Nicarágua, um número improvável se contrastado com os globais e regionais.
“É incrível que, enquanto no restante dos países da América Central morrem entre 6 e 11 pessoas por cada 10 mil habitantes a cada semana, na Nicarágua morra apenas uma”, afirmam os autores do estudo.
Testes inacessíveis e vacinação lenta
Um problema que a população da Nicarágua vem enfrentando é a dificuldade de acesso a testes de PCR. Os testes, que custam US$ 150, são administrados exclusivamente pelo Minsa e estão disponíveis apenas à pessoas que vão viajar para fora do país, profissionais da saúde e pacientes com sintomas graves. Da mesma forma, o único lugar autorizado para realizar os testes é o Centro Nacional de Diagnóstico e Referência, do Ministério da Saúde, o que força os nicaraguenses a enfrentarem multidões e filas longas. Nos últimos meses, o Minsa se vê sobrecarregada pela grande demanda de teste, que é um requisito para viajar para quase todos os países.
Além disso, a Nicarágua vacinou apenas 2,32 milhões dos seus quase 6,5 milhões de habitantes, o equivalente a 35% da população. Nesse contexto, mais de 100 mil nicaragüenses têm ido a Honduras em busca de vacina contra a Covid-19: alguns porque não conseguiram se vacinar nos limitados dias de vacinação efetuados até dezembro e outros porque procuravam vacinas compatíveis com os "passaportes da Covid-19".
Diante da procura, o governo de Honduras instalou postos de vacinação ao longo da fronteira em resposta ao aumento de nicaraguenses desde setembro de 2021, quando a Nicarágua viveu a onda mais agressiva de Covid-19.
Até meados de outubro, as vacinas disponíveis na Nicarágua eram limitadas: o governo comprou 3,6 milhões de doses da Sputnik Light, de dose única. No entanto, milhares de nicaragüenses se recusaram a receber a vacina por não haver sido aprovada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Da mesma forma, o governo anunciou a compra de 7 milhões de doses das vacinas cubanas Soberana 02 e Abdala, que também não foram aprovadas porque ainda estão em estudo na população pediátrica. Os pais têm pouca informação sobre essas vacinas, que estão sendo administradas a crianças maiores de dois anos e adolescentes. Assim, a vacinação na Nicarágua tem sido feita com a mesma opacidade da contagem de óbitos, infecções e testes.
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Um exemplo foi incumprimento do governo de Ortega de uma das principais recomendações da OMS, que era vacinar os profissionais da saúde durante os primeiros 100 dias de 2021. A imunização do setor começou apenas em maio e não incluiu profissionais do setor privado, que durante os picos de Covid-19 deram assistência ambulatorial. Da mesma forma, houve denúncias de funcionários da linha de frente de hospitais públicos que não foram incluídos no grupo prioritário. Como consequência, durante a segunda onda da pandemia entre julho e setembro deste ano, o Observatório Cidadão identificou 252 infecções no sindicato médico da Nicarágua.
Orçamento anti-Covid não executado
O Observatório para Transparência e Anticorrupção também acusa o regime de Ortega de não executar o orçamento anti-Covid, resultado de empréstimos do Fundo Monetário Internacional (US$ 75,5 milhões), Banco Centro-Americano de Integração Econômica (US$ 7,22 milhões), Banco Mundial (US$ 5,62 milhões) e Banco de Integração Econômica (BID). No entanto, não existem dados detalhados sobre como esses recursos foram gastos.
“Para ter acesso a eles, o governo teve que concordar com uma série de condições contratuais nas quais se prometia tornar as informações da Covid-19 transparentes: infecções, óbitos, testes e compras. Mas isso foi apenas parcialmente cumprido. Não se sabe quanto desses empréstimos já foi entregue às autoridades e como foi executado”, dizem os autores.
A Nicarágua também recebeu mais de US$ 10,62 milhões apenas em doações feitas por Taiwan, Áustria, BCIE, Banco Mundial e Unicef. Ou seja, o regime acumulou mais de US$ 126 milhões em recursos para enfrentar a pandemia de Covid-19, mas 88% não foi implementado e não há relatórios públicos sobre a execução dos 12%.
“Um dos poucos investimentos apontados pelo Minsa, este ano, é a melhoria da rede de frio, com a qual já é possível armazenar vacinas ultracongeladas, como as da Pfizer, mas não se sabe com que recursos esse investimento foi feito. A opacidade também domina o investimento em vacinas. Apesar de fazer compras pontuais, não se sabe quanto vale o contrato de vacina com a Rússia, e não há clareza sobre o acordo feito com Cuba pelas 7 milhões de vacinas”, indica o Observatório.
O relatório deixa claro que o problema não é apenas sobre a transparência sobre o número de mortes e infecções, mas sobre tudo relacionado ao combate à Covid-19. Agora, resta saber se Ortega, recentemente reeleito com 75% em eleições sem oposição, enfrentará a nova variante da variante ômicron e ou se escolherá, agora que tem poder absoluto, zelar pela saúde dos nicaraguenses.
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