
As mulheres latino-americanas estão vencendo a luta pelo aborto legal
Argentina, Colômbia e México recentemente legalizaram ou descriminalizaram o aborto. Chile e Brasil serão os próximos?


Há apenas cinco anos, parecia inconcebível que a ultraconservadora Colômbia descriminalizasse o aborto, ou que o Chile católico e neoliberal estivesse se preparando para votar uma nova constituição que consagrasse os direitos sexuais e reprodutivos, incluindo o aborto voluntário.
No entanto, em fevereiro, a Corte Constitucional da Colômbia descriminalizou o aborto até as 24 semanas de gestação, em resposta a um processo judicial promovido por Causa Justa, organização por trás de uma ampla campanha social e jurídica que inclui mais de 120 grupos e milhares de ativistas.
A Colômbia está agora “na vanguarda da região e do mundo”, segundo a médica e ativista feminista Ana Cristina González, porta-voz da Causa Justa.
A campanha, lançada em fevereiro de 2020, “foi o resultado de uma construção política, nacional e internacional” que mudou “o debate público sobre o aborto na Colômbia” e se tornou um “movimento coletivo e articulado”, explicou González em uma reunião em Montevidéu , Uruguai.
O aborto era completamente proibido na Colômbia até 2006, quando uma decisão inicial da Corte Constitucional – em caso impulsado por várias ativistas que hoje integram a Causa Justa – descriminalizou as interrupções baixo três circunstâncias: em caso de risco à vida ou saúde da mulher; em casos de anormalidade fetal grave; e em casos de estupro.
Uma onda semelhante tomou o Uruguai em 2012, quando o país legalizou o aborto até 12 semanas. E novamente em 2020, quando o parlamento argentino aprovou uma lei que permite o aborto até 14 semanas, após uma luta de décadas. A “onda verde”, batizada em homenagem aos lenços verdes usados pelas ativistas pelo aborto legal, seguro e gratuito, inspirou e dinamizou toda a região.
Avanços no Chile e no México
A América Latina continua a testar os limites do possível. Apenas um mês após a decisão colombiana, a Convenção Constitucional do Chile – atualmente encarregada de redigir uma nova constituição para o país – aprovou, por ampla maioria, um artigo que consagra os direitos sexuais e reprodutivos como fundamentais e garantidos pelo Estado. Esses direitos incluem o aborto voluntário.
O artigo estabelece que “todas as pessoas são titulares de direitos sexuais e reprodutivos [incluindo] o direito de decidir livremente, de forma autônoma e informada sobre seu corpo, o exercício da sexualidade, a reprodução, o prazer e a contracepção”.
Além disso, o Estado garantirá o exercício desses direitos “sem discriminação, com enfoque de gênero, inclusão e relevância cultural” e “garantindo a todas as mulheres e pessoas com capacidade de gestar, as condições para a gravidez, para a interrupção voluntária da gravidez, parto e maternidade voluntários e protegidos”.
O Chile poderia se tornar o primeiro país do mundo a dar status constitucional ao direito ao aborto
Durante a ditadura de Augusto Pinochet, o Chile proibiu o aborto em todas as instâncias. Apenas em 2017 a legislação passou a reconhecer o direito em casos de estupro, inviabilidade fetal e risco à vida da mulher. Os chilenos votarão pela aprovação da nova constituição em setembro; se aprovada, será o primeiro país do mundo a dar status constitucional ao direito ao aborto.
No ano passado, a Suprema Corte do México declarou inconstitucional a criminalização do aborto e invalidou uma lei federal que permitia que os profissionais de saúde se recusassem a realizar o procedimento por “objeção de consciência”. Essa decisão significa que nenhuma mulher pode ser presa por interromper sua gravidez, estabelece jurisprudência e pressiona os estados a legalizar o aborto.
De fato, sete estados mexicanos já legalizaram o aborto voluntário até 12 semanas, cinco deles nos últimos 18 meses: Cidade do México (2007), Oaxaca (2019), Veracruz, Hidalgo, Baja California, Colima (2021) e Sinaloa (2022).
Hoje, 37% da população de 652 milhões da América Latina e do Caribe vive em países onde as mulheres conquistaram o direito ao aborto legal ou descriminalizado (incluindo Cuba, Guiana e Porto Rico). Há cinco anos, era menos de 3%.
Essas vitórias não teriam sido possíveis sem o ativismo, as redes feministas, manifestações e conversas públicas sobre a autonomia das mulheres.
Além disso, graças à inovação feminista e aos avanços da medicina, a taxa de mortalidade por abortos ilegais vem caindo consistentemente. Entre 2005 e 2012, o número de tratamentos para complicações por abortos inseguros caiu em um terço, segundo o Instituto Guttmacher, que também diz que o uso do medicamento misoprostol “tornou-se mais comum em toda a região” e “parece ter aumentado a segurança dos abortos clandestinos”.
Foram as feministas latino-americanas que aprenderam, no início da década de 1990, que o misoprostol era eficaz e seguro para interromper a gravidez. Hoje, este medicamento é recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e aprovado pelas autoridades de saúde em diversos países.
Essas ativistas também lançaram um dia de ação global, hoje observado em todo o mundo em 28 de setembro como o Dia Internacional do Aborto Seguro.
Mas há mais a fazer
No entanto, apesar desses avanços significativos, milhões ainda vivem uma realidade tenebrosa. O aborto é proibido em todas as circunstâncias na República Dominicana, El Salvador, Haiti, Honduras, Nicarágua e Suriname. Em El Salvador, as mulheres podem enfrentar até 50 anos de prisão por sofrerem aborto espontâneo ou outra emergência obstétrica, como dar à luz a um natimorto.
Em Belize, Bolívia, Brasil, Costa Rica, Equador, Guatemala, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela, o aborto é permitido em circunstâncias limitadas – mais comumente em situações que oferecem risco à saúde ou a vida da mulher. Belize e Bolívia também levam em conta as dificuldades financeiras e familiares e, assim como Brasil e Panamá, estupros e anomalias fetais graves.
Meninas e mulheres estupradas são forçadas a dar à luz nos países com proibição total do aborto, mas também na Costa Rica, Guatemala, Paraguai, Peru e Venezuela. No Equador, o presidente Guillermo Lasso vetou parcialmente o projeto de lei aprovado pelo parlamento de permitir o aborto em casos de estupro.
A próxima grande vitória pode vir do país mais populoso da região, o Brasil
Parece haver pouca esperança de qualquer mudança nas restrições ao aborto na América Central, mas a próxima grande vitória pode vir do país mais populoso da região, o Brasil, com seus 212 milhões de habitantes.
O aborto só é permitido em casos de estupro, anencefalia fetal (defeito grave no cérebro e no crânio) ou quando a mulher corre riscos de vida. Mas acesso a esse direito também vem é dificultado pelo governo Jair Bolsonaro, que mobiliza grupos de fanáticos para assediar mulheres e profissionais de saúde. No entanto, as pesquisas das eleições de outubro atualmente favorecem o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que afirmou recentemente ser a favor da legalização do aborto.
Como disse González, da Causa Justa, não há democracia plena quando metade da população não tem o direito de decidir sobre seus corpos e suas vidas – e criminalizar o aborto faz exatamente isso.
A luta pelo aborto legal é, antes de mais nada, uma batalha pela liberdade e pela democracia.
Do outro lado, no entanto, há tentativas poderosas e coordenadas de reverter direitos sexuais e reprodutivos duramente conquistados, não apenas na América Latina, mas em todo o mundo. Essa reação inclui redes internacionais bem financiadas para desinformar e manipular mulheres e promover práticas não comprovadas e potencialmente perigosas, incluindo um “tratamento” para “reverter” abortos médicos – ambos revelados por investigações do openDemocracy.
Há também exércitos de advogados treinados e pagos por grupos conservadores internacionais para litigar ou fazer lobby contra os direitos das mulheres. Esses são grupos que elaboraram cuidadosamente uma agenda para acabar com o direito constitucional ao aborto nos EUA.
O movimento antiaborto vem avançando pelo país, forçando as mulheres americanas a um mundo assustador de atraso, perseguição e abortos clandestinos e inseguros – um mundo que suas irmãs latino-americanas vivenciam há décadas.
Mas, pelo menos no momento, na América Latina os antiabortistas estão perdendo. E nós estamos vencendo.
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