democraciaAbierta: Feature

O mundo das crianças que traficam pessoas na fronteira dos EUA

Na divisa EUA-México, o tráfico oferece aos jovens uma maneira arriscada de sustentar suas famílias em tempos difíceis

Gabriella Sanchez Cameron Thibos
8 Junho 2022, 12.01
Ciudad Juárez é palco conhecido do tráfico entre o México e os EUA
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Derechos Humanos Integrales en Acción (DHIA)

Crianças de ambos os lados da fronteira EUA-México ajudam a traficar pessoas e drogas para os Estados Unidos. Para a maioria deles, a atividade é um trabalho ocasional que fazem ao lado de muitos outros. Esses mesmos adolescentes vendem produtos em mercados, limpam mesas em restaurantes, são aprendizes em oficinas e trabalham em canteiros de obras.

Esses jovens traficantes ingressam nesse mundo pelo mesmo motivo que os leva a realizar outros trabalhos: precisam de dinheiro, mas não têm oportunidades para ganhá-lo. Eles são pobres. Moram em partes distantes da cidade onde o transporte público é escasso. Enfrentam estigma devido à sua sua condição social e à cor de sua pele. No geral, abandonaram ou foram expulsos da escola. Essas características restringem suas opções de emprego. Eles sabem que o tráfico é ilegal, mas oferece uma das poucas maneiras pelas quais os jovens marginalizados podem efetivamente converter seu conhecimento em lucro na região da fronteira. Seus ganhos, embora limitados, beneficiam suas famílias. Assim, para eles, o tráfico é uma forma de trabalho legítima, embora criminalizada.

Também é um trabalho perigoso. Os adolescentes podem se perder no deserto ou se afogar no Rio Grande. Podem ser atacados por animais ou apreendidos pelas autoridades de imigração dos EUA. No entanto, algumas das violências mais graves que enfrentam vem de dentro: de outros adolescentes envolvidos no tráfico de pessoas e drogas. Apesar das histórias de cartéis indomáveis que operam nas fronteiras, os testemunhos das crianças da fronteira deixam claro que aqueles que as recrutam como guias, aviõezinhos e vigias geralmente não passam de grupos organizados de jovens como eles. Alguns são até recrutados como executores e ganham a vida punindo outros. A violência entre os homens jovens neste cenário tornou-se normalizada. Até certo ponto, é até esperado.

Algumas das violências mais graves que enfrentam vem de dentro: de outros adolescentes envolvidos no tráfico de pessoas e drogas

Meninas, ao contrário, raramente se envolvem no tráfico. Uma das razões esclarece por que tantos meninos o fazem: grande parte do mercado de trabalho ao longo da fronteira depende do trabalho de mulheres e meninas. Esses empregadores são conhecidos como maquiladoras, centros manufatureiros de propriedade estrangeira que produzem bens para exportação e dependem de uma força de trabalho feminina, supostamente mais "dócil" e "manejável". Como resultado, homens e meninos se viram excluídos de uma importante fonte de emprego em uma área onde a escassez de emprego é a regra.

Essa reorientação afetou mais do que apenas a dinâmica do trabalho. Cientistas sociais há muito argumentam que o deslocamento da força de trabalho masculina por uma indústria que privilegia o trabalho feminino contribuiu para a violência sexual e de gênero nas comunidades fronteiriças. O assassinato de mulheres na região é comum, e os desaparecimentos relacionados a longas histórias de violência por parceiro íntimo são um fenômeno generalizado. Entretanto, uma das principais causas de morte entre os jovens é o homicídio por arma de fogo.

Crescer na fronteira

Este é o contexto que serve de pano de fundo para os depoimentos de crianças da fronteira e suas famílias que divulgaremos nas próximas semanas. Todas as crianças cruzaram a fronteira irregularmente, seja buscando suas próprias aspirações migratórias ou para traficar outras pessoas. Sua cidade de origem é Ciudad Juárez, a cidade irmã mexicana de El Paso, no extremo oeste do Texas. As duas cidades são tão próximas que, se não houvesse uma fronteira entre elas, seriam uma única comunidade.

Juárez há muito existe em nossa consciência coletiva graças a Hollywood, à grande mídia e à literatura do crime organizado. A cidade é conhecida como um campo de batalha para os cartéis de drogas mexicanos; como capital mundial do feminicídio; e, graças aos esforços dos governos Trump e Biden para conter a migração, como um enorme campo de refugiados.

Juárez também é onde uma a ONG Derechos Humanos Integrales en Acción (DHIA) lançou o primeiro esforço do México para combater os desafios enfrentados pelas crianças envolvidas no tráfico. Através do projeto de 2016, a agência local de proteção à criança passou a encaminhar as crianças flagradas cruzando a fronteira para o DHIA para serviços de justiça restaurativa. Hoje, o DHIA ainda é a única organização sem fins lucrativos do país que presta assistência jurídica, educacional e psicológica a essa população.

O fechamento da fronteira durante a pandemia de Covid-19 marcou tempos movimentados para os traficantes

Os depoimentos desta série foram elaborados juntamente com os ativistas do DHIA, com o apoio das crianças e mães beneficiados pela organização. Os relatos foram compilados durante o auge da pandemia em 2021, quando empresas tiveram que fechar suas portas, reduzindo ainda mais as opções de emprego. Ao mesmo tempo, o fechamento da fronteira dos EUA para requerentes de asilo aumentou a demanda por serviços de travessia da fronteira em comunidades como Juárez. Foram tempos movimentados para traficantes.

Os depoimentos giram em torno de um momento central de violência: o assassinato de um jovem que traficava pessoas para os EUA. Através do contato com as pessoas mais próximas à vítima, aprendemos o que aconteceu, os motivos e as consequências de sua morte.

As histórias contadas por sua família e amigos não apenas descrevem sua morte, mas também a contextualizam. Eles esclarecem a mecânica grosseira do tráfico, as pressões sociais e econômicas dessa comunidade e os fardos e aspirações de seus habitantes. Para aprofundar ainda mais esse quadro, também entrevistamos cinco membros do DHIA.

Juntos, esses testemunhos pintam um quadro fragmentado, porém detalhado, de como as vidas se desenrolam na sombra do muro fronteiriço. Eles colocam em primeiro plano as pessoas, não o crime, e comunicam as complexidades enfrentadas por um grupo específico de jovens em uma cidade como Juárez. De muitas maneiras, essas complexidades não são tão diferentes daquelas enfrentadas por jovens em outros lugares. Tédio. Sede de viagem e aventura. Desejo de auto-conhecimento. Amor pelos pais apesar da imposição constante de regras. Essas histórias mostram as consequências muitas vezes devastadoras das escolhas dos jovens em meio à criminalização da juventude, militarização das fronteiras e controle da migração, mas também o amor e a determinação de uma comunidade que busca alcançar mudanças.

Disponibilizaremos os depoimentos neste espaço à medida que forem publicados.

Leia os relatos

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