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Reação ocidental à fala de Lula sobre guerra na Ucrânia mostra poder do Sul Global

Washington acusou o presidente de tomar o lado da Rússia no conflito. Mas as ramificações do seu posicionamento vão além

Manuella Libardi
19 Abril 2023, 10.00
Em sua visita à China, Lula parece haver assumido oposição a Washington frente à guerra na Ucrânia
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Ken Ishii/Getty Images

Com sua visita à China na semana passada, Luiz Inácio Lula da Silva moveu o peão do Brasil no tabuleiro de xadrez político internacional. Embora continue a promover uma posição oficial de neutralidade, o presidente brasileiro criticou o papel dos Estados Unidos na guerra na Ucrânia ao defender que o governo Biden, ao armar os ucranianos, incentiva o combate.

As declarações de Lula repercutiram negativamente na Ucrânia e no Norte Global, que as interpretaram como uma posição de apoio à Rússia. Antecipando sua visita à China, Lula já havia sugerido que a Ucrânia abrisse mão da Crimeia para acabar com a guerra. “A Ucrânia aprecia os esforços do presidente do Brasil para encontrar uma solução para interromper a agressão russa”, disse o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Ucrânia, Oleg Nikolenko. "Ao mesmo tempo, devemos observar claramente: a Ucrânia não comercializa seus territórios."

O discurso de Lula na China provocou uma resposta ainda mais contundente dos americanos, que argumentaram que Lula assumiu uma clara oposição a Washington – contradizendo sua suposta pretensão de neutralidade. Eles não estão errados. De fato, Lula parece mais interessado em promover a inserção do Brasil como peça fundamental no reordenamento das potências globais do que em manter sua relação com o poderoso vizinho do norte.

China frente à onda anti-EUA na América Latina

A posição do presidente confirma a tendência regional de mudanças geopolíticas que se afastam da hegemonia dos Estados Unidos. Nesse processo, que começa com a eleição de Andrés Manuel López Obrador no México em 2018, ganha força com Alberto Fernández na Argentina em 2019 e se consolida com a eleição de Gustavo Boric no Chile em 2021, Lula no Brasil e Gustavo Petro em Colômbia em 2022, a China desempenha um papel vital.

Na virada do século, os Estados Unidos desviaram a atenção da América Latina para se concentrar em suas guerras no Afeganistão e no Iraque, contribuindo para a maré rosa de líderes latino-americanos que questionaram sua complicada e histórica relação com a potência. A diminuição da influência dos EUA na região não passou despercebida pela China.

Entre 2000 e 2020, o comércio entre a China e a América Latina passou de US$ 12 bilhões para US$ 315 bilhões – um aumento de 26 vezes. Só no Brasil, a China passou de uma participação de menos de 2% nas exportações brasileiras em 2000 para 32,4 % em 2020. Em 2000, a China não estava nem entre os cinco principais parceiros comerciais do Brasil. Em 2022, a China lidera a lista com uma participação mais que o dobro da dos Estados Unidos, segundo maior parceiro comercial do país.

Os Estados Unidos sabem que precisam recuperar o terreno perdido para a China em seu "quintal". Por isso, mesmo que critiquem Lula, os Estados Unidos não podem fazer muito, uma vez que sua relação com o Brasil é uma das mais importantes da região.

As aspirações diplomáticas de Lula

Nesse sentido, buscar muita ideologia nas declarações de Lula durante sua visita à China é complicado nesse cenário. Mas o presidente brasileiro poderia ter se isentado de se posicionar em relação à guerra na Ucrânia. No entanto, ficar de fora do evento geopolítico mais relevante dos últimos anos também não interessa às ambições diplomáticas de Lula para o Brasil.

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Como líder brasileiro entre 2003 e 2010, Lula direcionou a política externa do Brasil para o fortalecimento da multipolaridade global por meio dos BRICS e outras alianças com países do Sul Global. Lula, que agora tenta recolocar o Brasil no cenário internacional após quatro anos de governo isolacionista de Jair Bolsonaro, se propõe a servir de mediador ao lado de outros países neutros do Sul Global, como Índia e Indonésia.

A menção a esses países não é por acaso. Ao escolher os países mais populosos do mundo fora a China e os Estados Unidos, o líder do Brasil – o sexto mais populoso – deixa a mensagem de que representantes de bilhões de pessoas optaram por não tomar partido na guerra, que tem sido promovida pelo Ocidente como um conflito entre os defensores supremos da democracia e dos direitos humanos contra autoritários tiranos.

Diante da guerra na Ucrânia, grande parte do Sul Global – que sobrevive diariamente as desigualdades produzidas pelo colonialismo passado e presente – relutou em acatar a retórica de que seus algozes ocidentais são os defensores da justa causa.

A Ucrânia, no entanto, abraçou a retórica, argumentando que a Rússia é uma ameaça ao "modo de vida" europeu baseado em "regras, valores, igualdade e justiça" em um discurso em fevereiro. A posição da Ucrânia de apelar para a questão moral como um atributo exclusivamente europeu foi um erro. Embora os Estados Unidos e a Europa Ocidental mantenham sua posição hegemônica no cenário global, o bloco vem perdendo espaço desde a crise financeira de 2008-09.

O Brasil e a nova ordem global

No Brasil, o posicionamento de Lula em relação à guerra perpassa ideologias políticas em um país altamente polarizado. Bolsonaro, que apesar de suas tendências autoritárias havia rejeitado a relação com a China para se aproximar dos Estados Unidos de Donald Trump, optou por não condenar explicitamente a Rússia pela invasão da Ucrânia.

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Esta parece ter sido a única questão durante a campanha eleitoral de 2022 em que Bolsonaro e Lula concordaram. O atual presidente também evitou fazer críticas claras a Vladimir Putin, optando por usar a ocasião para criticar as invasões ocidentais usando linguagem ambivalente.

Aqui vemos novamente o pragmatismo do Brasil em relação ao tema. Um dos principais exportadores agrícolas, o país depende dos fertilizantes da Rússia para o agronegócio, um importante ator político em nível nacional.

O poder das potências ocidentais é inegável, mas também é inegável que o mundo caminha cada vez mais para a multipolaridade. O Brasil não é uma potência mundial, mas os países do Sul Global sabem que coletivamente têm poder. Os vários exemplos de alianças – talvez mais notadamente os BRICS – ilustraram o fenômeno, com sucessos e fracassos.

Parece que a Ucrânia percebeu isso. O Ministério das Relações Exteriores do país se pronunciou várias vezes após as falas de Lula na China. Na terça-feira, o porta-voz Nikolenko convidou Lula para uma visita oficial ao país para entender "as verdadeiras causas da agressão russa e suas consequências para a segurança mundial".

Para muitos no Ocidente, a diplomacia brasileira é ambiciosa e ingênua, como opinou o The Economist. Ingênua ou não, o Ocidente está prestando atenção – e parece preocupado com as reivindicações do populoso Sul Global.

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